Acórdão nº 322/17.1T9PTG.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelS
Data da Resolução24 de Novembro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Relatório No inquérito nº 322/17.1T9PTG, que correu termos no MP junto da Comarca de Portalegre, pelo MP foi proferido despacho final, determinando o respectivo arquivamento, nos termos do art. 277º nº 1 do CPP, em relação à totalidade da queixa apresentada por «D…» contra L…, A…, A…, J…, H…e «T…»

Inconformada, «D…», constituída assistente nos autos, requereu a abertura de instrução, com a finalidade de que fossem pronunciados os arguidos pelos crimes de abuso de confiança p. p. pelo art. 205º nº 1 do CP, de infidelidade p. e p. pelo art. 224º nº 1 do CP e de concorrência desleal p. e p. pelo art. 317º do Código da Propriedade Industrial (CPI)

Para o efeito da apreciação do pedido de abertura de instrução, foram os autos distribuídos ao Juízo Local Criminal de Elvas do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, tendo a Exª Juiz deste Juízo proferido, em 22/11/2018, um despacho com o seguinte teor: «Concordando com a promoção de fls. 192, anote em local visível e destacado da capa dos autos a data apontada para a prescrição do procedimento criminal e insira o correspondente alarme no Citius

* A assistente D…, veio requerer, a fls. 210 e ss., a abertura de instrução

Nos termos do n.º 1 do artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento

Se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela

Assim, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que remete para as alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal

Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução “deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” - in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11ª Edição, pág. 552

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido

Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da ação penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes”

O requerimento para abertura de instrução deverá conter as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação. Deverá, igualmente, conter factos que constituem uma verdadeira acusação. Isto é um pressuposto da instrução, uma vez que, desta forma se fixam os poderes de cognição do juiz. Sem tais elementos não poderá o juiz abrir tal fase processual

Apreciemos, pois, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente

O requerimento de abertura de instrução em causa contém os motivos de discordância do despacho de arquivamento, mas a assistente não elaborou uma verdadeira acusação, como o exigem os normativos legais supra referidos

A assistente, depois de tecer as considerações quanto à discordância do despacho de arquivamento, devia elaborar a acusação relativamente à qual pretende ver os arguidos pronunciados

Não se percebe quais os factos que imputa concretamente a cada um dos arguidos, que permita subsumi-los nos três tipos de ilícitos criminais que lhes imputa, a cada um dos arguidos ou a algum e a qual dos arguidos em concreto (?), sendo certo que refere: “os arguidos cometeram indubitavelmente os crimes de abuso de confiança, infidelidade e concorrência desleal, previstos e punidos pelos artigos 205.º, n.º 1, 224.º, n.º 1 e 317.º do Código Penal, respetivamente”(fls.212/verso)

Cada um dos tipos legais mencionados exige, para ocorrer uma possível futura condenação dos arguidos, a indicação e enumeração dos factos que permita constatar, verificarem-se os pressupostos dos elementos dos tipos objetivos e subjetivos de cada um dos ilícitos invocados, e neste ponto, o requerimento da assistente peca por omissão, não explanado factos atribuídos à conduta dos arguidos, que efetivamente se enquadrem nos referidos pressupostos de cada um dos ilícitos criminais a que faz menção

A essa conclusão se chegou no despacho de arquivamento do Ministério Público, o qual não nos merecer censura porquanto se mostra devidamente esclarecedor e com fundamentação subjacente

Assim, a conclusão a que se chega é que a assistente não expõe de modo preciso os factos praticados pelos arguidos que se subsumam nos crimes que lhes imputa. O que a assistente refere quanto à matéria factual fá-lo por uma forma vaga e que não se enquadra em nenhum dos referidos ilícitos criminais, como também resulta explicitado no despacho de arquivamento

Veja-se o entendimento proferido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 13.07.2017, no âmbito do processo n.º 203/14.0T9ENT.E1, acessível em www.dgsi.pt, sobre esta questão, com o qual se concorda em absoluto (com sublinhado nosso): «I – O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente tem de conter, designadamente e sob pena de nulidade: (i) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (ii) a indicação das disposições legais aplicáveis

II – Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos prevenidos no artigo 287.º n.º 3, do CPP, o requerimento do assistente para abertura da instrução que deixe de arrolar a totalidade dos factos consubstanciadores do crime pelo qual pretende ver o arguido pronunciado, sob pena de, em infração regras de economia e utilidade processuais, se fazer iniciar uma instrução que, à partida, inarredavelmente, só se pode ter por inconsequente.» Não cabe ao Tribunal escolher os factos que deveriam fazer parte dessa acusação

Conforme resulta do artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, na formulação da "acusação" não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas à "narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...". E percebe-se porquê, se tivermos bem presente que é pela acusação que se define e fixa o objeto do processo - o objeto do julgamento - e, portanto, passível de condenação é tão só o acusado e relativamente aos factos constantes da acusação"

Como refere José Souto de Moura, "se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados(...). Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto" - in "Inquérito e Instrução" (cfr. "Jornadas de Direito Processual Penal", pág. 120)

A falta de descrição de factos e normas legais no requerimento de abertura de instrução do assistente constitui ao mesmo tempo a nulidade prevista no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), dada a remissão do artigo 287.º, n.º 2, e, em conformidade com o n.º 3 deste último preceito, causa de rejeição desse requerimento

De referir o Acórdão da Relação do Porto de 23 de Maio de 2001, in CJ, III, 238, que esclareceu que: “o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando o MP.º arquiva o inquérito fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do juiz de instrução”

Segundo o Ac. da RP de 21.11.2001, in CJ, V, 2001, há fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, se tal requerimento, não descreve os factos, nem indicar as disposições legais incriminadoras por forma a cada arguido poder saber concretamente o que lhe é imputado. Num tal caso, existe falta de acusação, e não apenas acusação deficiente, o que torna a instrução legalmente inadmissível

* Assim sendo, o requerimento apresentado pelo assistente enferma da nulidade, prevista no artigo 283.º, n.º 3, para que remete o artigo 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal (só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal), devendo por isso ser rejeitado

* Nestes termos, decide-se rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução

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* Custas...

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