Acórdão nº 298/16.2T9EVR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 21 de Janeiro de 2020

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução21 de Janeiro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos autos em referência, findo o inquérito que correu termos na Secção do DIAP de Montemor-o-Novo, da Procuradoria da República da Comarca de Évora, na sequência de queixa apresentada por PS contra legais representantes do Banco…, S.A. e contra AV, imputando-lhes factos que subsumiu ao crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º do Código Penal (CP), foi o mesmo arquivado, com fundamento em ausência de indícios suficientes nos termos do disposto no art. 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP).

Pelo queixoso, na qualidade de assistente, foi requerida a abertura da instrução, visando a pronúncia dos arguidos.

No Juízo de Instrução Criminal de Évora, proferiu-se despacho que rejeitou o requerimento quanto ao Banco …, S.A., com fundamento em insusceptibilidade de responsabilidade criminal nos termos do art. 11.º, n.º 2, do CP.

Realizada instrução no restante, proferiu-se decisão instrutória que não pronunciou o arguido AV pela prática do referido crime de abuso de poder.

Inconformado com tal decisão, o assistente interpôs recurso, formulando (após convite ao aperfeiçoamento por via do art. 417.º, n.º 3, do CPP) as conclusões: 1. O recorrente não se conforma com o despacho de não pronúncia proferido, na medida em que, dos autos constam suficientes indícios, nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 308º do CPP.

  1. O Tribunal de Instrução Criminal não fez uma correcta interpretação da prova documental junta aos autos, nos termos do disposto no artigo 127º e, em consequência, aplicou de forma errónea, o disposto no artigo 308º n.º 1 in fine do CPP, porquanto foram recolhidos, em inquérito, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena.

  2. Com efeito, comete o crime de abuso de poder, quem abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

  3. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido constitui o campo de delimitação da tipicidade.

  4. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, mas que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo - a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

  5. A integração do crime de abuso de poder, p. no elencado art. 382.º, supõe, pois, por um lado, o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (o mau uso ou uso desviante dos poderes da função), e, em conjugação, a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objectivo.

  6. O preenchimento do tipo objectivo não se confunde, porém, com o erro de função ou com a prática e actos susceptíveis de revogação por uma instância de reapreciação, não sendo integrado, na inteira dimensão típica, sem a concorrência da atitude interna do agente que deve estar pressuposta como finalidade da acção.

  7. Por isso, a verificação dos elementos do crime de abuso de poder não se situa num plano de instância alternativa de recurso ou reapreciação, mas tem de estar primeiramente dirigida à apreensão, por via de elementos externos, da atitude interna do agente que constitui a intenção específica.

  8. Esta atitude interna, por seu lado, não pode ser lida sem o suporte de elementos externos e objectivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste.

  9. O contexto, como modo de interpretação da conjunção de elementos de ambiência, deve, aqui, revelar-se de particular importância.

  10. A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.

  11. Delimitados pelas considerações supra, o que verificamos é que os documentos carreados para os autos, em sede de inquérito e o contexto em que os factos ocorreram, demonstram de forma objectiva a conduta processual do arguido, revelando a intenção de, pelo menos, obter benefícios, 13. O que o Tribunal “a quo” não cuidou de interpretar, integrar e retirar as devidas ilações, correctamente.

  12. Na verdade, antes da prolação de sentença proferida nos Embargos de Executado, em face do Embargo deduzido, que encontravam-se em dívida quantias, já não relativas a capital, mas sim, despesas de contencioso e penalizações, desta feita, no montante de € 2.524,54.

  13. Na mesma altura processual, como decorre do inquérito, já se encontravam efectuadas penhoras de vencimento, de depósitos e veículos, nomeadamente, os veículos matrículas B5- e -KQ determinadas pelo arguido Agente de Execução e que, asseguravam, tout court, os direitos da exequente, cobrindo, efectivamente, a quantia em dívida, alcançando as penhoras efectuadas o montante de 6 339,39€ ab initio - conforme documento n. º 2 junto com o requerimento de abertura de instrução; 16. Não obstante já ter o pagamento da dívida exequenda processualmente assegurado, o arguido, continuou a determinar penhoras, atrás de penhoras, desde quotas em sociedades, direitos a heranças indivisas, quer do assistente, quer da sua ex-cônjuge, conforme resulta abundantemente do inquérito e instrução.

  14. E, directamente, fruto da conduta processual do arguido surgiram quantias a liquidar superiores i) à quantia exequenda inicial ii) aos montantes que já se encontravam assegurados por penhoras iniciais (o total que passa a ser imputado ao assistente é de 9.951,27 €).

  15. Quem beneficia com esta actuação OBJECTIVAMENTE é o arguido, já que devido a todos os actos que foram efectuados e correspondentes registos, o assistente terá que pagar valores absolutamente elevados, ainda que a quantia exequenda estivesse desde o início assegurada pelas penhoras dos dois veículos, sem necessidade de mais qualquer penhora ou acto de cobrança.

  16. É, REITERA-SE por demais evidente que, quem beneficiou com toda esta situação é o arguido, pois que vê - com a prática de actos inúteis e manifestamente desproporcionados, face à quantia exequenda em causa e aos actos inicialmente praticados- reitera-se, aumentada exponencialmente, a quantia que lhe é devida por honorários.

  17. O arguido ao tentar cobrar desenfreadamente, como é o caso, conduta que resulta sobejamente dos autos, sem olhar a meios, está a abusar do poder que lhe foi conferido no exercício de funções públicas; 21. O arguido, ao penhorar, concomitantemente, saldos bancários, salários, penhora de sociedades, veículos e heranças para garantir uma dívida que não alcançava três mil euros, abusou do princípio da extensibilidade da penhora e, por conseguinte, a praticar o crime de abuso de poder.

  18. Ao assim agir, entende o assistente, o arguido abusou do poder que detém e violou os seus deveres funcionais, pois que o direito da exequente garantir o seu crédito, através da penhora de bens, não é arbitrário, antes obedece e conforma-se aos requisitos legais e colocou em causa a credibilidade e imparcialidade da administração da Justiça, ao agir da forma descrita e que se encontra consubstanciada nos autos, através de manifesta e abundante prova documental.

  19. Não existindo, aos olhos de qualquer Homem Médio, uma justificação plausível para a conduta processual que o arguido logrou efectivar nos autos, em vez de aguardar serenamente, o desfecho processual, tendo garantido o seu crédito pelas penhoras inicialmente efectuadas, que não seja uma intenção de obter benefícios, no caso, um aumento exponencial de quantias a título de honorários.

  20. O arguido agiu voluntária e conscientemente de que a sua conduta era vedada pela Lei e que provocaria, como provocou, prejuízos ao assistente e que coloca em crise a credibilidade e imparcialidade da Administração da Justiça.

  21. Cometeu, assim, em autoria material, um crime de abuso de poder p. e. p. pelo artigo 382º n.º 1 do Código Penal.

  22. Por isso, depois de devidamente analisada a prova documental carreada para os autos, deverá o presente recurso julgado procedente, por provado e substituída a decisão de não pronúncia, por outra, que remeta os autos para julgamento do arguido pela prática de um crime de abuso de poder p. e.p. pelo artigo 382º n.º 1 do Código Penal.

    O recurso foi admitido.

    O Ministério Público apresentou resposta, concluindo: 1. Inconformado com a decisão instrutória proferida nos autos em epígrafe que. não pronunciou o arguido AV, da prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º, nº 1, do Código Penal, dela recorre agora o assistente PS.

  23. Em face das conclusões formuladas pelo recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso, presume o Ministério Público, que o recorrente pretende ver reapreciada a presente decisão à luz do disposto no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, sendo certo, porém, que nas alegações não estão indicados tais vícios, entendendo que a norma violada será a contida no artigo 127º do Código de Processo Penal.

  24. Contudo, a douta decisão recorrida não padece de qualquer dos vícios a que se reporta o artigo 410º, nº 1 acima indicado.

  25. Acresce que da leitura do requerimento de abertura de instrução resulta que os factos imputados ao arguido não estão alegados de forma clara, objectiva e concisa.

  26. Por outro lado, foi devidamente respeitado o princípio da livre apreciação da prova, contido no artigo 127º do Código de Processo Penal, na medida em que a Mma. JIC fundamentou e explicitou de modo claro e objectivo as razões e elementos em que se alicerçou para considerar que não havia indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de abuso de poder.

    Termos em que, em no nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT