Acórdão nº 248/16.6T9BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 04 de Dezembro de 2017

Magistrado ResponsávelJORGE BISPO
Data da Resolução04 de Dezembro de 2017
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I.

RELATÓRIO 1.

Nos autos de instrução com o NUIPC 248/16.6T9BRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Instrução Criminal de Braga - J1, foi proferida decisão instrutória, em 03-05-2017, a declarar inaplicável, ao caso, a lei penal portuguesa e a julgar prejudicada a possibilidade de submissão a julgamento perante as instâncias judicias nacionais da arguida, M. C. F., pela indiciada prática, em autoria material, de um crime de burla e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido o primeiro deles pelas disposições conjugadas dos art.s 217º, n.º 1, e 218, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e c), e o segundo pelo art. 256º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal, conforme lhe era imputado por via do requerimento de abertura de instrução aprestando pelo assistente, J. A. C., na sequência do arquivamento, nessa parte, do inquérito.

  1. Inconformado, dessa decisão recorreu o referido assistente, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se reproduzem [1]: «EM CONCLUSÃO: Questão da localização dos factos: I- Crê-se que a factualidade conducente à entrega dos valores em numerário é distinta da factualidade conducente à entrega dos cheques, mormente o de 100.000,00 € efetuada pelo Recorrente, existindo um ardil diferente, em momento diferente e para fins diferentes, posto que em íntima conexão com a factualidade conducente à entrega de numerário.

    II- A factualidade conducente à entrega do cheque de 100.000,00 € constitui uma burla com autonomia, sendo em relação a esta que se deve aferir o local da sua consumação.

    III- Não foi com a mera entrega do cheque que a Arguida exorbitou o uso que havia anunciado ao Recorrente J., tendo-se desviado do mesmo apenas quando rompe com a mera detenção daquele, apresentando-o a pagamento e, perante a sua devolução por saque irregular, o dá à execução.

    É apenas nesse momento que o cheque se converte num instrumento apto a causar prejuízo e que se materializa a intenção da Arguida.

    IV- Assim, entende-se que o crime de burla relativo ao cheque de 100.000,00 €, emitido pelo Recorrente J. A. C., se consumou em território nacional, com a sua apresentação a pagamento ou, ao menos, com a instauração de execução nele fundada. Pelo que o Tribunal violou o disposto no art. 7º n.º 1 do Código Penal, o que determinou diretamente a decisão de declaração de incompetência da jurisdição portuguesa para conhecer do crime.

    SUBSIDIARIAMENTE, V- Ainda que se entenda nem existir consumação estaríamos, então, perante uma mera tentativa, antecedida de vários atos de execução (o ardil determinante da entrega do cheque, a apresentação frustrada a pagamento e a instauração da execução) com vista à apropriação da quantia titulada por aquele, enquanto resultado típico visado, que não ocorreu.

    VI - Pelo que, atenta a punibilidade da tentativa (cfr. n.º 2 do art. 217º do CP), ter-se- ia que considerar Portugal o lugar da prática do facto, nos termos do art. 7º n.º 2 do Código Penal, normativo subsidiariamente violado pelo Tribunal a quo. Pois, o resultado típico – o recebimento efetivo do valor do cheque – dever-se-ia ter produzido necessariamente em Portugal, por via da apresentação a pagamento e, após a sua frustração, por via de processo executivo, instrumentos esses que são os únicos aptos à produção de tal resultado, conforme a representação e intenção da Arguida.

    VII- É certo que não é esta a perspetiva constante do requerimento de abertura de instrução. No entanto, a factualidade dele constante suporta este enquadramento, sendo que a conversão da forma consumada em forma tentada não constitui uma alteração substancial dos factos, antes desagravando da responsabilidade penal da Arguida, tendo em conta que “a tentativa é punível com a pena aplicada ao crime consumado, especialmente atenuada” (cfr. n.º 2 do art. 23º do CP).

    Questão da aplicação da lei substantiva penal portuguesa: VIII - Em face do supra exposto, entende-se que, dentre os factos que integram o conjunto dos comportamentos da Arguida, há efetivamente a verificação de um dos resultados típicos dessa cadeia de atos em território português, que exprimem uma consumação ou – pelo menos – uma tentativa na qual o resultado típico – o pagamento efetivo – foi prefigurado e visado pela Arguida.

    IX - Entende-se, pois, que a apresentação do cheque a pagamento ou, pelo menos, a instauração de execução com base nele, constituem os resultados típicos mediatos decorrentes da intenção da Arguida, localizados em Portugal que, por essa razão, não pode deixar de ser considerado o lugar da prática do facto nos termos do art. 7º n.º 1 do Código Penal.

    Ou, subsidiariamente, numa ótica de tentativa, seria o ordenamento jurídico onde a Arguida representou a produção do resultado, por ser nele que o apresentou a pagamento e o deu à execução, conforme estabelecido no n.º 2 daquele art. 7º. Normativos que o Tribunal a quo violou na douta decisão instrutória recorrida.

    Questão da competência das instâncias nacionais: X - A competência das instâncias portuguesas para conhecer do crime de burla participado é uma decorrência automática da questão precedente. Pois, de acordo com o art. 19º n.º 1 do CPP, “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”. Clarifica o n.º 3 que, “para conhecer de crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados (…) é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato ou tiver cessado a consumação”, o que reforça a ideia de que basta a última das consumações sucessivas ocorrer em território português para a atribuição de competência aos Tribunais nacionais.

    XI - Assim, a competência das instâncias portuguesas para conhecer de crimes cujo lugar da sua prática, na aceção do art. 7º do Código Penal, seja o território nacional, resulta do disposto nos arts. 19º a 22º do Código de Processo Penal, normativos esses que o Tribunal a quo violou.

    Questão da suficiência dos indícios: XII - O Tribunal não chegou a conhecer acerca da suficiência de indícios, tendo-se quedado – com o devido respeito, que é muito - por uma apreciação genérica e superficial, sem a análise da prova produzida em inquérito e sem ter permitido a produção da prova requerida em sede de instrução, por força do decidido quanto à questão prévia da inaplicabilidade da lei penal substantiva portuguesa e da inerente falta de competência das respetivas instâncias.

    XIII - Sublinhe-se que o Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária de Braga pugnou, expressamente, pela existência de indícios suficientes na informação de fls. 32, que detalhou no relatório de fls. 119 a 131 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

    XIV - Da factualidade enunciada no requerimento de abertura de instrução – e prova que a apoia - resulta, em resumo, que a Arguida invocou a existência de negócios imobiliários apelativos que bem sabia não existirem, consistentes na aquisição de imóveis, como forma de serem bem aplicadas as poupanças dos Assistentes, incentivando-os, ainda, pela facilidade de serem feitas entregas de verbas faseadas para esse desiderato. Resulta, ainda, que o pedido de entrega dos cheques de garantia se baseou na alegada impossibilidade em serem realizadas as escrituras num dado momento, servindo os mesmos, designadamente, para garantir o bom cumprimento da aquisição pelos Assistentes.

    O que tudo se revelou falso, já que os valores não foram destinados a negócio algum, nem foram utilizados para garantir a respetiva celebração. De resto, a inexistência de qualquer negócio tornou-se evidente, já que é a própria Arguida quem declina a realidade que utilizou como pretexto para recebimento de valores e dos ditos cheques – cfr. posição que assume nos embargos cujas peças constam de fls. 61 e segts. dos autos.

    XV - Tais comportamentos configuram, inequivocamente, o tipo de crime de burla (qualificada), nos termos dos arts. 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal do Código Penal, visto que a Arguida determinou os Assistentes quer à entrega de valores, quer à entrega dos cheques, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocou, factos esses sem os quais estes jamais lhe entregariam o que quer que fosse.

    XVI - Não parece relevante a coerência última do ardil, numa avaliação de juristas – como a ensaiada pelo Tribunal a quo – posto que o conhecimento da mecânica dos negócios imobiliários não é exigível a um cidadão comum, o qual não possui conhecimentos para pôr em causa a bondade dos pretextos que eram apresentados pela Arguida, no quadro de uma relação de elevada confiança que não favorece uma análise crítica dos factos por leigos, como os Assistentes.

    XVII - O que tudo deveria merecer a prolação de despacho de pronúncia, pela prática pela Arguida, em autoria material, de um crime de burla de 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal, na forma consumada ou, subsidiariamente, na forma tentada (por tal conversão não envolver alteração substancial dos factos), tendo a douta decisão recorrida violado implicitamente o art. 308º n.º 1 do CPP.

    *TERMOS EM QUE Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta decisão instrutória recorrida, julgando-se aplicável a lei penal substantiva portuguesa, com o inerente reconhecimento de competência da jurisdição portuguesa e pronunciando- se a Arguida pelo crime p. e p. nos arts. 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal, por verificação de indícios suficientes da respetiva prática, submetendo-se a Arguida a julgamento.

    Com o que se fará JUSTIÇA.» 3.

    Na sua contramotivação, o Exmo. Procurador da República junto da primeira instância formulou a síntese conclusiva que a seguir se transcreve: «CONCLUSÕES 1. A M.ª Juiz de Instrução proferiu decisão no sentido de considerar inaplicável ao caso a lei penal portuguesa e por tal circunstâncias julgou prejudicada a...

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