Acórdão nº 22/09.6ZRCBR-B.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 03 de Dezembro de 2014

Magistrado ResponsávelISABEL SILVA
Data da Resolução03 de Dezembro de 2014
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA I - HISTÓRICO DO PROCESSO 1. O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) deduziu acusação contra A..., e outra, imputando-lhe a autoria material de um crime de lenocínio, na forma continuada, previsto e punido (de futuro, apenas p. p.) pelo art. 170º nº 1 (até Setembro de 2007) e art. 169º nº 1 (posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04.09) e 30º nº 2, todos do Código Penal (de futuro, apenas CP).

Aquando da dedução da acusação deduziu ainda incidente de liquidação, nos termos dos artigos 1º nº 1 al. i), 7º, 8º nº 1, 10º nº 1, 2, 3 e 4 da Lei nº 5/2002, de 11.01.

Posteriormente, requereu o arresto de bens do arguido, suficientes para garantir o montante de € 223.200,00 encontrado em sede de liquidação.

2. Apreciando o pedido de arresto, a M.mª Juíza decidiu nos seguintes termos: «1. No âmbito do Processo nº 22/09.6ZRCBR, foi, pelo Ministério Público deduzida acusação contra os arguidos A... e B... , imputando ao arguido A... a prática, em autoria material de um crime de Lenocínio, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 169°, nº 1 e 30°, nº 2 do Código Penal (punido pelo artigo 170, nº 1 do Código penal pelos factos praticados até Setembro de 2007), e à arguida B..., a prática, em autoria material de um crime de Lenocínio, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 169°, nº 1 e 30°, nº 2, ambos do Código Penal.

  1. O Ministério Público procedeu à liquidação, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 7°, 8°, nº 1, 10°, nº 1, nº 2, nº 3 e nº 4 e artigo 1°, nº 1, al. i) da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro.

  2. O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

    O Ministério Público tem legitimidade.

    Não há nulidades ou questões prévias que cumpra apreciar.

  3. Em face da prova testemunhal, em conjugação com a prova documental constante dos autos, resulta fortemente indiciada a factualidade imputada ao arguido na acusação deduzida pelo Ministério Público, tendo os arguidos auferido, com a imputada actuação ilícita a quantia global de € 223.200,00.

  4. Subsunção jurídica De acordo com o disposto no artigo 7°, nº 1 da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, em caso de condenação pela prática de crime referido no nº 1 da citada Lei, nos quais se inclui o crime de Lenocínio, e para efeito de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

    O Ministério Público, de acordo com o artigo 8° da citada lei, liquida, na acusação, o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado.

    De acordo com o artigo 10º nº 1 da Lei vinda de referir, para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do artigo 7°, nº 1, é decretado o arresto de bens do arguido, sendo o arresto decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227° do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime, sendo aplicável, em tudo o que não contrariar a citada lei, o regime do arresto preventivo do Código de Processo Penal.

    Foi requerida a procedência da liquidação e a declaração de perdimento a favor do Estado da quantia de € 223.200,00 (duzentos e vinte e três mil e duzentos euros).

  5. Decisão Face ao que fica dito supra, decide-se deferir ao requerido, decretando, ao abrigo dos artigos 391°, nº 2, 393°, nº 1 do Código de Processo Civil, 228° do Código de Processo Penal, e artigo 7°, n. ° 1 da Lei n. ° 5/2002, de 11 de Janeiro, o arresto dos bens identificados a fls. 21 (que se dão por integralmente reproduzidos), até garantia do montante em causa.».

  6. Inconformado, recorre o arguido de tal decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES: «1.º - A Lei n.º 5/2002, de 11.01, estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, em relação aos crimes que tipifica no seu artigo 1.º.

    1. - Porém, especificamente em relação ao incidente de arresto previsto no artigo 10º ss do referido regime, não diz a lei, de forma expressa, quem será o juiz competente para a sua decisão.

    2. - Contudo, uma coisa parece certa: esse juiz não poderá ser o Juiz de Instrução, uma vez que a prolação dessa decisão não cabe no âmbito das competências atribuídas ao Juiz de Instrução nos artigos 168.º, 169.º, 170.º e 287º, todos do C.P.P.

    3. - E bem assim, porque, sendo aquela decisão tomada, necessariamente, depois de proferida a acusação, e por inerência depois de encerrado o inquérito, e fora do âmbito da instrução propriamente dita, aquela exorbita do momento e da fase processualmente própria de atuação do juiz de instrução.

    4. - Pelo que, ao proferir a decisão sob recurso, a Sr.ª Juíza de Instrução violou as normas referidas em 3.º, o que, nos termos do disposto nos artigos 32º nº 1 e 119º al. e) ambos do C.P.P., implica a nulidade da decisão.

    5. - Como é sabido, a Lei nº 5/2002 "estabelece um regime especial de perda de bens a favor do Estado", que consiste na presunção iuris tantum da origem ilícita dos bens de pessoas condenadas pela prática de certos crimes (descritos no art. 1º), com vista a proporcionar o confisco das presumidas vantagens de suposta atividade criminosa anterior 7º - Trata-se sem dúvida de uma verdadeira e própria presunção, pela qual certo facto, desconhecido e não comprovado (a ilicitude da origem de certo património), é inferido de outros factos, conhecidos e comprovados.

    6. - Neste regime o que mais tem alarmado (com razão) a doutrina quando olha para este regime especial é a possível inconstitucionalidade das normas que "invertem o ónus da prova" (arts. 7 e 9 da Lei nº 5/2002), impondo ao arguido a prova da "congruência" do seu património (a prova da licitude dos seus bens e rendimentos) que, o Ministério Público indicou na liquidação que tiver feito.

    7. - O que sempre constitui um atentado ao basilar privilégio de que goza o arguido, em processo penal, de não ter de contribuir para a sua incriminação, para além de também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo.

    8. - Por isso, sempre terá que ser assegurado um processo equitativo, no sentido de a dita “liquidação” feita pelo Ministério Público, permitir ao arguido exercer o seu direito de defesa e o contraditório (tanto mais que sobre ele recaí um ónus de prova, apesar da sua duvidosa constitucionalidade).

    9. - Isto significa que, a liquidação do montante apurado como devendo ser arrestado e mais tarde perdido a favor do Estado (art, 8º nº 1 da Lei n" 5/2002) - tal como a posterior (se for o caso) condenação a declarar o valor que deve ser perdido (art. 12 nº 1 da mesma lei) - que assenta num "juízo de prognose para o passado terá de ser feita com recurso a factos concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, de modo a perceber-se que é a diferença entre um e outro (a diferença entre o valor do património global e o valor do património lícito) que se presume constituir vantagem da atividade criminosa, ou seja, o tal património incongruente (art. 7 nº 1 da mesma lei).

    10. - Assim, quer a liquidação, quer o pedido de arresto, quer a condenação, não podem ser feitas de forma arbitrária, sem fados concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, o que sempre constituiria frontal violação do disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1,2 e 5 da CRP.

    11. - E o que se diz para o Ministério Público na liquidação, diz-se para o Juiz que decide o arresto ou determina a perda de bens, sob pena sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório e também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo, assim violando o disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1, 2 e 5 da CRP.

    12. - No caso em apreço, a alegação do Ministério Público, quer na acusação quer na liquidação, para onde remete a decisão recorrida - ou por ser omissa quanto a factos essenciais ou por se ficar pela alegação de expressões meramente conclusivas e sem substrato fáctico que permita concretiza-las e exercer quanto a elas qualquer contraditório próprio do exercício de um direito de defesa - não cumpre aquele dever de alegação de factos concretos e objetivos, referido supra, que permitam perceber como foi calculado o valor do respetivo património global do arguido (na aceção do artigo 7.º da Lei), e bem assim o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito.

    13. - A título de exemplo, apontamos para o ponto 13.º do incidente de liquidação, onde Ministério Público, quando procura demonstrar o “rendimento congruente (lícito) do arguido” remete para um quadro que, alegadamente estará a fls.785 dos autos.

    14. - Porém, esse quadro não consta da acusação, não consta da liquidação e não consta de decisão impugnada e é em absoluto desconhecido do arguido.

    15. - Por isso, a falta, quer na decisão recorrida, quer na liquidação, quer na acusação um dos termos de comparação que permite determinar qual o valor do património ilícito do arguido, e que permita ao arguido apreciar os termos em que o Ministério Público calculou o seu rendimento licito em ordem a exercer o seu direito ao contraditório como parte do seu direito de defesa.

    16. - Na liquidação efetuada pelo Ministério Público, este arranca da alegação feita na acusação, e que serve de base de cálculo, que consiste na presença no apartamento do arguido de 6 mulheres por dia (todos os dias do ano, de dia e de noite...

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