Acórdão nº 340/08.0PAPBL.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 06 de Julho de 2016

Magistrado ResponsávelVASQUES OS
Data da Resolução06 de Julho de 2016
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra I. RELATÓRIO No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Pombal – Instância Local – Secção Criminal – J2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal.

Por sentença de 13 de Novembro de 2015, foi o arguido absolvido da prática do imputado crime.

* Inconformado com a decisão, recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: 1. A... foi acusado, em processo comum, pela prática de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo artigo 296º do Código Penal, acabando por ser absolvido.

  1. Na base dessa absolvição esteve, como é admitido na fundamentação da sentença, um único factor – a saber – a falta de reiteração da conduta, isto é, que o arguido tivesse usado a criança por mais do que uma vez na mendicidade/a pedir esmola.

  2. Baseando este entendimento na doutrina do Prof. Taipa de Carvalho, explícita no comentário que faz ao artigo 296º do Código Penal na obra "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II".

  3. Entendimento com o qual o Ministério Público não pode, de todo, concordar, daí a interposição do presente recurso.

  4. Baseando-se, então, o recurso na questão de saber se o crime previsto no artigo 296º do Código Penal implica uma reiteração de condutas, como exige o Tribunal, ou não, como entende o MP, por parte do agente.

  5. A questão não é pacífica, entendendo, por exemplo, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque que "Não é necessário um período de duração mínimo de actividade, bastando a colocação do menor ou incapaz a pedir".

  6. Discordâncias à parte, é unanimemente considerado que o artigo 296º do Código Penal tem como bem jurídico protegido o direito à dignidade, ao desenvolvimento normal, socialmente saudável e responsável da criança e ainda o direito a um tratamento que favoreça a sua integração social, sendo que o que se pune aqui não é a mendicidade em si mesma, mas sim a mera utilização da criança nessa actividade, diminuindo-a enquanto pessoa na sua dignidade.

    8. A Organização Internacional do Trabalho define a mendicidade como um conjunto de actividades através das quais uma pessoa pede dinheiro a um estranho em razão de ser pobre ou de necessitar de doações de caridade para a sua saúde ou por razões religiosas. Porém, há indivíduos e redes de crime organizado que exploram as suas vítimas através da mendicidade forçada, podendo essas vítimas ser, entre outros, crianças, idosos, adultos com deficiências e mulheres grávidas ou com bebés de colo, geralmente em situações de vulnerabilidade, em contextos de exclusão social, pobreza, discriminação, famílias disfuncionais, ou ainda em resultado de processos migratórios desestruturados.

  7. Também no contexto da Diretiva 2011/36/EU, de 5 de Abril de 2011 Relativa à Prevenção e Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos e à Proteção das suas Vítimas, "a mendicidade forçada deverá ser entendida como uma forma de trabalho ou serviços forçados, tal como definidos na Convenção N.º 29 da OIT de 1930 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório".

  8. Tendo de se considerar estas realidades como algo também inerente à punição e protecção da criança que é feita pelo artigo 296º do Código Penal, porque são realidades que gravitam frequentemente em volta dos actores e fenómeno em causa.

  9. Incumbindo aos Estados, de acordo com os artigos 32º e 36º da Convenção sobre os Direitos da Criança, dar às crianças o direito de serem protegidas contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social, isto é, proteger a criança contra todas as formas de exploração prejudiciais a qualquer aspecto do seu bem-estar.

  10. Assim, sempre que uma criança se mostre explorada desse modo, que inclui a sua colocação a pedir esmola/na mendicidade, encontra-se em perigo, nos termos do artigo 3.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

  11. Ora, através de uma leitura atenta do tipo previsto no artigo 296º do Código Penal, não se alcança uma exigibilidade de reiteração de condutas, não se fazendo ali referência a reiteração, ao número de vezes da conduta, dias, semanas, "tempo relativamente longo", entre outros.

  12. Caso o legislador exigisse uma reiteração de condutas, certamente tê-lo-ia dito, à semelhança do que fez com outros ilícitos típicos (como por exemplo o crime de subtracção de menor e o crime de perseguição), significando que se o legislador não usou essa técnica neste âmbito foi porque expressamente não o quis fazer.

  13. Por outro lado, exigências de reiteração de condutas e de tempo introduzem inevitavelmente aleatoriedade, muito pouco consentânea com a clareza que se quer numa norma que pune criminalmente determinados comportamentos.

  14. Na verdade, fazer apelo a conceitos como "tempo relativamente longo", vários dias ou semanas, equivale a um vazio e a completa incerteza, ficando assim o preenchimento do tipo dependente de algo que não é minimamente claro ou certo.

  15. Ficando o destinatário da norma sem saber quantas condutas são necessárias para cometer o crime e tendo necessariamente de colocar várias questões para saber se, afinal, a colocação de uma criança a pedir é punida criminalmente – mais do que duas condutas? três? quatro? mas quatro seguidas? dentro de uma semana é suficiente? o que é o "tempo relativamente longo"? Se passar um prazo relativamente curto ou longo entre umas acções e outras terá de se reiniciar a contagem das condutas para termos o crime preenchido? 18. Somos da opinião que o acto de mendigar se esgota numa única actividade, o que tem apoio, desde logo, na visão que cada um de nós tem sobre essas actividades e na própria definição de mendicidade como "o acto de mendigar" e "mendigar" como pedir por esmola, solicitar, rogar, suplicar; pedir esmolas, ser mendigo.

  16. Considerando necessariamente qualquer pessoa que vê uma criança nas condições em que foi provado na sentença, que aquela está a mendigar, mesmo não sabendo se é a primeira ou centésima vez que o faz, afigurando-se-nos artificial o entendimento de que terão de existir vários actos de mendigar para haver mendigagem.

  17. Sendo assim, a actividade punida pode-se prolongar no tempo ou esgotar-se num só acto, sendo que o adulto, para efeitos de angariação de proveitos económicos (dinheiro ou géneros), instrumentaliza e/ou se aproveita da criança, não fazendo sentido exigir reiteração de condutas num âmbito de utilização de criança, por exemplo, em trabalhos forçados, maus-tratos, exploração sexual, entre outros, sendo que em todos estes tipos se protege (tal como aqui) a dignidade da criança.

  18. Se é esse o bem jurídico protegido – e quanto a isso não pode haver dúvidas – é então desprovido de sentido e claramente inconsequente exigir uma reiteração de condutas naquilo que se torna, com o entendimento adoptado pelo Tribunal, algo pernicioso e um benefício ao infractor.

  19. Já que, concluindo-se necessariamente que é indigno para a criança ser usada, uma vez que seja, na mendicidade por parte de um adulto, torna-se altamente contraditório e incongruente alegar que um determinado tipo de ilícito defende a dignidade da criança, mas o direito penal só intervém se o bem jurídico for violado várias vezes (mas quantas vezes?!), assim desprotegendo a criança a esse nível.

  20. Tendo em conta, como se referiu, que por detrás da incriminação terá de estar a protecção contra o perigo de utilização, não rara, da criança face a redes de exploração sexual, laboral, tráfico de seres humanos, entre outros, muitas vezes pelos próprios familiares.

  21. Relevando a reiteração, assim, quanto a nós, apenas para agravação da pena a aplicar.

  22. Não sendo natural nem apreensível a forma como o Tribunal interpreta o crime em apreço, jogando essa interpretação mal com os objectivos legais, apenas não condenado o arguido por não se ter provado que este utilizou por mais do que uma vez a criança na mendicidade, provando-se que o dinheiro apreendido ao arguido tinha sido entregue pela filha.

  23. O Tribunal efectuou uma errada interpretação da norma incriminadora, tendo a decisão absolutória violado o disposto no artigo 296º do CP.

  24. Deve, em consequência, ser a decisão final ser revogada e substituída por outra que, dando como provados os factos em causa, dê também como provado que "O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, que utilizou a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, actuando com o propósito de daí retirar benefício económico, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente".

  25. Condenando, a final, o arguido numa pena pela prática do crime em questão.

    Contudo, V. Exas. farão JUSTIÇA.

    * O arguido respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões: 1 – O crime de utilização de menor na mendicidade consuma-se com a prática reiterada do acto de mendigar.

    2 – Não se encontrando provada a reiteração da conduta punível e prevista pelo artigo 296º do Código Penal, o Arguido foi e bem absolvido da prática do mencionado crime.

    Nestes termos e nos melhores de Direito deve o recurso em apreço ser julgado improcedente.

    Só assim se decidindo se fará a costumada Justiça! * Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando que, ao considerarem-se provados os factos levados aos pontos 1 a 5 da factualidade provada...

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