Acórdão nº 1654/09.8TBAMT-E.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 27 de Setembro de 2017

Magistrado ResponsávelJORGE SEABRA
Data da Resolução27 de Setembro de 2017
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 1654/09.8T8AMT-E.P1 - Apelação Origem: Porto Este – Amarante – Juízo de Comércio - J1.

Relator: Jorge Seabra 1º Adjunto Des.

Maria de Fátima Andrade 2º Adjunto Des.

Oliveira Abreu* * Sumário:I. Uma escritura pública de mútuo com hipoteca não produz, para além do círculo constituído pelo declarante e pelo declaratário que nela outorgaram (ou respectivos representantes), prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (contrato real «quoad constitutionem»).

  1. A confissão extrajudicial escrita feita perante terceiro – que não interveio na escritura pública de mútuo com hipoteca – não produz, também, face ao preceituado nos arts. 371º, n.º 1 e 358º, n.ºs 2 e 4 do Código Civil, prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, antes valendo como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.

  2. Na verificação de créditos em processo de insolvência, desde que o crédito reclamado se mostre impugnado (por outro credor ou pelo Administrador da Insolvência), recai sobre o credor reclamante o ónus de prova da existência do crédito.

  3. Destarte, impugnado o crédito, não tendo sido produzida prova plena da sua existência, nem produzido qualquer outro meio de prova complementar por parte do credor reclamante, na dúvida, a decisão sobre a sua realidade deve ser proferida contra o onerado com o ónus de prova, ou seja o credor reclamante (art. 346º do Cód. Civil).

* * Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO1. No processo de insolvência de B… (cuja insolvência foi decretada por sentença proferida a 16.11.2010), foi reclamado por C… e D…, além do mais, um crédito no montante de €202.424,66 (capital e juros), com origem em contrato de mútuo celebrado com a insolvente e garantido por hipoteca, ambos celebrados mediante escritura pública de mútuo com hipoteca datada de 25.01.2007 e conforme documento a fls. 154-158 dos autos.

  1. O aludido crédito não foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência, que o fez constar da lista prevista no art. 129º, n.º 3 do CIRE, invocando, ainda, das razões ou fundamentos do seu não reconhecimento.

  2. Nesta sequência, vieram os aludidos reclamantes C… e D… impugnar a lista de credores reconhecidos, pugnando, a final, no sentido de o seu crédito (acima referido) ser reconhecido nos termos peticionados com todas as legais consequências.

  3. O Sr. Administrador respondeu à impugnação, mantendo a sua posição inicial no sentido do não reconhecimento do citado crédito.

  4. Frustrada tentativa de conciliação (fls. 109-110), e oferecido parecer pelo Sr. Administrador – mantendo a sua posição inicial -, foi proferido despacho a dispensar a elaboração de base instrutória, sendo os credores impugnantes notificados para, querendo, renovarem os meios de prova oferecidos, o que vieram a fazer com consta a fls. 217-223 dos autos.

  5. Após vicissitudes várias, veio a ter lugar audiência de julgamento, apenas com alegações orais dos Ils. Mandatários, em face da ausência de qualquer dos depoentes e das testemunhas antes arroladas.

  6. Veio a ser proferida sentença que, a final, no que releva à presente apelação, concluiu nos seguintes termos: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: (…) b) Julgar procedente a impugnação apresentada pelos Impugnantes C… e D… quanto ao crédito reclamado no montante de €175.000,00 e, em consequência, julgar tal crédito aprovado e, em consequência também, reconhecido e verificado, devendo ser incluído na Lista de Créditos Reconhecidos; (…) e) Graduar tais créditos, para serem pagos da seguinte forma: – quanto ao produto da venda do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 1248/19890201 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 7085 (verba n.º1 do auto de apreensão), deverá pagar-se: 1. (…) 2. o crédito cabido aos credores hipotecários C… e D… no valor de €175.000,00, montante garantido pela hipoteca voluntária;»*8. Inconformado com a sentença proferida, veio o Sr. Administrador interpor recurso de apelação, em cujo âmbito ofereceu as seguintesCONCLUSÕES1. Não se encontra minimamente sustentado, nem no referido contrato de mútuo nem em qualquer outro documento, a realização de qualquer transferência bancária que justifique a real existência de tal contrato de mútuo.

  7. Dispõe o artigo 1142.º do CC que “ Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”, daqui resultando que o contrato de mútuo só se completa com a entrega da coisa. Assim, são dois os elementos que caracterizam o contrato de mútuo: i) a prévia entrega, temporária e por uma das partes à outra, de uma quantia monetária ou outra coisa fungível; ii) a posterior prestação correspondente da contraparte em devolver outro tanto do mesmo género e qualidade.

  8. Refere o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 25/11/2013, no âmbito do processo n.º 4316/11.2TBVFR-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, que “ Sendo o contrato de mútuo, um contrato real, determinando, neste sentido, que só se completa pela entrega da coisa, temos de admitir que na falta de entrega desta, ocorrerá, necessariamente, a nulidade do contrato de mútuo por falta de objecto nos termos do art. 280º, do Código Civil, pois, apesar do que foi escrito na respectiva escritura, não ocorreu, nem na data da sua celebração, nem antes nem depois, a entrega de qualquer quantia pecuniária, devendo reconhecer-se, outrossim, que por tal motivo, ocorrerá a extinção da prestada garantia hipotecária.”.

  9. Não estando demonstrada, nos presentes autos, a entrega, por parte dos Reclamantes – saliente-se que a Credora Reclamante D… é irmã da insolvente e que os Recorridos não reclamaram o seu crédito no processo onde foi declarada a insolvência do comproprietário do imóvel -, de quaisquer verbas à Insolvente, na sequência da celebração do contrato de mútuo, não se pode inferir que este se encontra completo, não se encontra perfeito, não obstante este consubstanciar um documento autêntico, com força probatória plena, nos termos do disposto no artigo 371.º do Código Civil 5. No entanto, e como dispõe o n.º 1 desse mesmo preceito, tal documento autêntico apenas faz prova plena dos factos atestados pela entidade documentadora, com base nas suas percepções, e já não o conteúdo desses mesmos factos.

  10. Como refere o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 7/04/2016, no âmbito do processo n.º 11063/12.6TBVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt “A escritura pública de mútuo com hipoteca constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo artigo. 371º do C.C, fazendo prova plena de que foi declarado pelas partes que os exequentes fizeram um empréstimo aos executados no valor de dez milhões de escudos, pelo prazo de três anos, de que se confessam solidariamente devedores. Mas já não faz força probatória plena a veracidade da aludida declaração.” Ou seja, “O documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, mas não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20/01/2015, processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt seguindo o mesmo entendimento o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/06/2014, no âmbito do processo n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, disponível em www.dgsi.pt.

  11. A força probatória a que alude o artigo 371.º do CPC apenas cobre (i) os factos praticados pela entidade documentadora, ou seja, a parte em que se refere, na escritura, que o notário a leu e explicou e (ii) os factos atestados pela entidade documentadora com base nas suas percepções, isto é, a parte em que, na escritura, se refere que uma parte declarou, perante o notário, conceder o empréstimo nos precisos termos que dela constam, e a outra parte declara aceitar tal empréstimo.

  12. No entanto, no que concerne aos factos referidos em (ii), a força probatória só vai até onde se alcancem as percepções do notário, não podendo ficar plenamente provado que o montante acordado foi, efectivamente, entregue por uma parte à outra, o que significa que “as declarações negociais – de empréstimo, de aceitação, de entrega e de recebimento do capital – constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, não ficam, com a mera apresentação das escrituras, “automaticamente” plenamente provadas.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/03/2015, processo n.º 78/13.7TBNLS-D.C1, disponível em www.dgsi.pt.

  13. Até porque o montante referido e a respectiva entrega do mesmo apenas estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o próprio notário tiver atestado esse facto através da sua percepção directa ou se a entrega tiver sido feita na sua presença. Como tal, entende o Recorrente que não têm os Credores Reclamantes qualquer crédito que mereça ser reconhecido.

  14. Acresce que a verba n.º 1 constante do auto de apreensão realizado pelo aqui Recorrente, verba sobre a qual foi reconhecida garantia hipotecária aos Credores Reclamantes, não consubstancia um imóvel, no seu todo, mas antes a metade indivisa do imóvel ali descrito.

  15. Ora, tendo sido apreendida somente a metade indivisa de tal imóvel, não poderão os créditos aqui em causa – que, repita-se, o Recorrente entende não serem reconhecidos – gozar de garantia hipotecária, pois que o imóvel, em si, não foi apreendido para a Massa Insolvente.

  16. Aliás, é vasta a jurisprudência que assim entende, destacando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/02/2012, proferido no âmbito do processo n.º 88/11.9TBMGL-E.C1, disponível em www.dgsi.pt referindo que “A credora hipotecária titular de hipoteca constituída sobre imóvel integrante da meação conjugal do insolvente, não goza da...

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