Acórdão nº 97/07.2JAGRD.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Novembro de 2009

Magistrado ResponsávelALBERTO BORGES
Data da Resolução07 de Novembro de 2009
EmissorTribunal da Relação de Évora

S Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: NEGADO PROVIMENTO Sumário: 1. O processo penal tem regras próprias quanto à junção de documentos: eles devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, “deve sê-lo até ao encerramento da audiência” (art.º 165 n.º 1 do CPP). Por isso, e de acordo com o invocado (pelos arguidos) princípio da lealdade processual (também a eles aplicável), se os arguidos entendiam necessária ou útil a junção do relatório relativo à acção encoberta a cuja existência aludiram, deveriam tê-lo solicitado em sede de instrução; não o tendo feito, e não se tratando, portanto, de qualquer diligência de prova superveniente, a sua junção só é admissível desde que se verifiquem os pressupostos previstos no art.º 340.º n.ºs 1 e 2 do CPP, ou seja, em síntese, desde que a sua junção se revele necessária para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, ou seja, para a descoberta da verdade do objecto do processo, definido pela acusação (pronúncia, nos casos em que haja pronúncia, como no caso acontece) e defesa.

  1. A prova cuja junção foi requerida pelos arguidos, não se demonstrando a existência de qualquer acção encoberta, é – de acordo com os critérios da razoabilidade e bom senso – no mínimo, de duvidosa obtenção, pelo que a sua requisição, com elevada probabilidade, mais não serviria senão para retardar o desfecho dos autos, o que só por si justificaria o indeferimento da mesma, por outro lado, essa prova (a existir) não se revela de qualquer relevância para o esclarecimento da verdade material, atento o objecto do processo acima definido, pois os arguidos não alegaram no momento próprio (a contestação) os factos que – sob a forma de suspeita - invocaram agora para requerer a junção de tal relatório e da discussão da causa também não resulta que tenham sido utilizados quaisquer métodos enganosos ou fraudulentos que tivessem provocado, condicionado ou de qualquer forma perturbado os arguidos na sua liberdade de determinação relativamente à prática do crime que cometeram (note-se que demonstrado ficou em julgamento que “agiram os arguidos de forma deliberada, livre e consciente, em comunhão de esforços e identidade de propósitos”, e que o fizeram com plena “consciência de praticar actos previstos e punidos por lei penal”, factos que – note-se – não impugnam e que, portanto, se têm de considerar como assentes.

    Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Grândola correu termos o Proc. Comum Colectivo n.º ---/07.2JAGRD, no qual foram julgados os arguidos A.M. e G.C., melhor identificados no acórdão de fol.ªs 1802 a 1828, de 12.02.2009, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos art.ºs 21 n.º 1 e 24 al.ª c) da Tabela I – C do DL 15/93, de 22.01, tendo, a final, sido decidido julgar a pronúncia parcialmente procedente e, em consequência, condenar os arguidos nas seguintes penas: 1) O arguido A.M., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21 n.º 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de cinco anos e seis meses de prisão; 2) O arguido G.C., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21 n.º 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de quatro anos e seis meses de prisão.

  2. Recorreram o Ministério Público e os arguidos do acórdão proferido (estes em recurso que apresentaram no primeiro dia útil após o termo do prazo), concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões: 2.1.

    O Ministério Público:

    1. Entende o Ministério Público que as penas aplicadas – próximas do limite mínimo da moldura abstracta – de cinco anos e seis meses de prisão e quatro anos e seis meses de prisão, são demasiado benevolentes.

    2. Perante os elementos de facto que se destacam na decisão recorrida, entre os quais avultam os atinentes ao grau da ilicitude (acentuado, quer pela natureza intrínseca do crime de tráfico, quer pela quantidade de droga envolvida – perto de quatro toneladas – quer pela dimensão internacional da operação em que intervieram), o diferente grau da culpa de cada um dos arguidos (mais grave o do arguido A.M., pois disponibilizou os meios necessários ao transporte da droga) e as necessidades de prevenção geral (muito fortes, face à danosidade social do ilícito de tráfico de estupefacientes), é de elementar justiça que se aplique ao arguido A.M. uma pena de oito anos de prisão e ao arguido G.C. uma pena de sete anos de prisão.

    3. Dissentindo deste entendimento, o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 40 e 71 do CP.

    4. O douto acórdão recorrido deve, por isso, ser parcialmente revogado e substituído por outro que condene os arguidos nos moldes acabados de referir.

      2.2.

      Os arguidos:

    5. Os recorrentes mantêm interesse no recurso intercalar que apresentaram tempestivamente do douto despacho exarado em acta de audiência de discussão e julgamento que teve lugar em 30.01.2009, o qual lhes indeferiu o seu requerimento de requisição do relatório confidencial de acção encoberta a que se refere o art.º 4 da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, o que fazem em cumprimento do n.º 5 do art.º 412 do CPP.

    6. Na verdade, os tribunais superiores só podem analisar a matéria de facto produzida em julgamento de primeira instância. Em consequência, face a esta limitação, e por maioria de razão, compete aos tribunais de primeira instância a consolidação da matéria de facto, sob pena de risco de perpetuação de erros judiciários. Significa isto que o tribunal de primeira instância não se pode auto-reduzir à procura da verdade consubstanciada no libelo acusatório do Ministério Público. Ao invés, a procura da verdade material em processo penal constitui um verdadeiro poder/dever do julgador.

    7. Com efeito, o STJ, no seu acórdão de 16.04.98, relatado pelo Cons. Hugo Lopes (www.dgsi.pt), decidiu que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um vício que se nos depara quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique”. Por seu turno, decidiu-se no Tribunal da Relação de o Coimbra, em acórdão de 14.4.99, relatado pelo Des. João Trindade (www.dgsi.pt), que “a insuficiência no apuramento da matéria de facto prevista no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP verifica-se quando há lacuna ao não se apurar o que é evidente que se podia apurar”.

    8. O processo penal não é propriamente um processo de partes. Nele vigora o princípio da investigação, que “traduz o poder-dever que incumbe ao tribunal de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão” – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 78.

    9. Pelo exposto, e voltando ao caso vertente, verifica-se que o tribunal a quo não investigou, podendo fazê-lo, todos os factos relacionados com o objecto do processo; não procurou conhecer toda a verdade material, podendo e devendo fazê-lo, bastando-se com os factos descritos no libelo acusatório, que apenas descrevem o final da operação policial que resultou na captura do recorrente.

    10. Na verdade, só o conhecimento do conteúdo do relatório confidencial da operação encoberta habilita o julgador a decidir: 1) sobre a eventual existência de alegado vício de utilização de meios enganosos – art.º 126 do CPP – em que se consubstancia a provocação do crime; 2) sobre a extensão da participação da PJ em todo o crime da importação da droga desde o alto mar; 3) sobre o desembarque na nossa costa; 4) sobre o armazenamento da droga em território português; 5) sobre o recebimento do veículo que transportou a droga; 6) sobre o carregamento da droga para esse veículo; 7) sobre a entrega do veículo já carregado de droga ao recorrente; 8) especialmente, qual a data/hora em que a droga em questão foi realmente apreendida.

    11. Todas estas questões, no caso do provimento do recurso intercalar, haverão de ser respondidas, segundo pensa o recorrente, da seguinte maneira: a droga em causa foi apreendida pela PJ em alto mar, transportada pela PJ para a costa portuguesa e armazenada pela PJ em local seguro de sua escolha, eventualmente em armazém alugado pelo Estado ou mesmo na casa forte da DCITE/PJ em Lisboa.

    12. Tudo isto terá sido efectuado em data muito anterior à própria contratação do recorrente para a efectivação do transporte. E a ser assim, como certamente aconteceu, o recorrente beneficiará de uma causa de exclusão de culpa, já que foi a PJ quem determinou, como efeito à distância, o recorrente ao crime, o qual não teria sido cometido, já que a droga tinha sido apreendida muito antes pela PJ.

    13. Na verdade, o recorrente alega ter sido contratado três dias antes da sua captura (cabendo ao Ministério Público o ónus de provar o contrário), pelo que não interveio nas fases prévias da eventual negociação e desenrolar da operação; o recorrente foi um mero correio de um produto ilícito que a PJ importou muito antes.

    14. Com efeito, o Estado não pode colocar os cidadãos perante a tentação do ilícito.

    15. Não tendo, pois, sido apurados, podendo sê-lo facilmente, todos os factos, enferma o acórdão recorrido do vício de insuficiência de matéria de facto provada para uma decisão de direito – art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP – tendo-se violado o poder/dever do tribunal no apuramento de toda a verdade (e não somente a que lhe é servida, seccionada, pela acusação) a que se refere o art.º 340 do CPP.

    16. “In casu”, até o recorrente conseguiu identificar em audiência o próprio elemento civil de confiança da PJ, de nome J.O., testemunha que, durante a inquirição, reconheceu...

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