Acórdão nº 1707/10.0T3AVR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 21 de Maio de 2014
Magistrado Responsável | JOS |
Data da Resolução | 21 de Maio de 2014 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório: No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 1707/10.3T3AVR que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro – Juízo de Média Instância Criminal – Juiz 1, em 30/8/2013, foi proferido Acórdão, cujo DISPOSITIVO é o seguinte : “Decisão: 11. Pelo exposto, decide-se absolver o arguido A...
da prática de: – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal; e – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal, que lhe eram imputados.
Sem custas.
Satisfazendo o solicitado, comunique à Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a presente decisão.
Proceda ao depósito do acórdão (artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal).
**** Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 30/9/2013, o Ministério Público, defendendo que o arguido não deve ser absolvido, mas sim condenado pela prática de 4 crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alíneas a) e b), 179.º, al. b), do Código Penal, ou, caso assim se não entenda, pela prática de 4 crimes de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do mesmo Código, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões: 1. Salvaguardando-se sempre o devido respeito, entende-se que o Tribunal a quo errou no enquadramento jurídico dos factos provados.
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Efectivamente, e ao contrário do considerado pelo tribunal a quo, quando a menor D..., nascida a 19/3/1996, confiada à instituição “ K..”, em (...), foi passar as férias da Páscoa, que decorriam desde o dia 31 de março a 4 de Abril de 2010, junto do agregado familiar da avó materna, do qual o arguido, seu tio, fazia parte integrante, foram transferidos de facto para estes as responsabilidades de cuidado e assistência inerentes à instituição e conformados às características daquela estadia, designadamente os deveres de zelarem pelo seu bem-estar físico e psíquico durante esse período.
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Entendendo-se como o tribunal a quo, tal implica aceitar que, nesses casos, há uma espécie de “vacatio” em que, em termos de facto, ninguém é responsável pela menor: - não o é a instituição, porque objectivamente a menor não está sob o seu domínio fáctico; - não o é a família que a acolha, porque não lhe está confiada legalmente a sua educação e assistência.
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É deixar de fora da tutela penal situações gravíssimas como a dos autos! 5. Pois, se é verdade que nos crimes de abuso sexual de menor dependente se visa proteger o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos confiados a outrem para educação e assistência se encontra em princípio carecida de uma protecção particular, pergunta-se: - Em que é que essa protecção deixa de estar carecida quando a menor, institucionalizada, é autorizada a passar fins-de-semana ou férias escolares em determinado agregado familiar, como foi o caso? 6. Pois não é quando está mais fragilizada e vulnerável? Quando, por carecer de afectos e aceitação, pode ser levada a “aceitar” e a “calar” comportamentos ilícitos de algum dos elementos do agregado que passou a, temporariamente, integrar?! Sobretudo quando esses são os únicos laços familiares, como era o caso, que ainda lhe era dado preservar e manter?! 7. Há ou não, nestes casos, de forma que cremos manifesta, uma especial relação de dependência entre o agente e a vítima?! Há ou não a percepção por parte do agente de que a menor lhe está confiada de facto e de que quem detém formalmente a sua responsabilidade está “à distância”, sabendo assim facilitada a sua actuação? Há ou não a percepção por parte da menor de que tem de agradar às pessoas que a recebem, para que continuem a ser autorizadas essas saídas da instituição que a acolhe e aquelas a continuem a querer receber?! 8. Entender-se como o tribunal a quo é retirar, de forma inaceitável, da tutela penal casos gritantes, como aquele de que os autos cuidam, e ainda muitos outros em que menores estejam fácticamente a cargo de outrem – que não a pessoa/instituição a quem estejam legalmente confiados -, sobre o qual recaia inegavelmente um especial dever de protecção, conformado às concretas características de que a estadia ou permanência da menor consigo se revista (fim-de-semana, férias, etc.).
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Aliás, o próprio tribunal deu como provado que a D... foi para casa da avó materna, ficando aos seus cuidados e dos tios (facto provado n.º 5) e ainda que o arguido sabia que a menor se encontrava institucionalizada e que naqueles dias estava aos seus cuidados e da avó (facto provado n.º 35).
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Motivos pelos quais se impunha que o tribunal tivesse concluído que a conduta do arguido, plasmada nos Factos Provados, constituía a prática de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b), 179.º, al. b), do Código Penal, pelos quais o deveria ter condenado.
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Mas ainda que assim não tivesse entendido, sempre o tribunal a quo deveria ter considerado que o arguido cometeu o crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do Código Penal, hipótese que equacionou mas que acabou por, a final, afastar.
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Pois se é certo que deu o tribunal a quo como provado, e bem, porque admitido pela própria D... em audiência de julgamento, que esta já havia tido, antes dos factos ocorridos com o arguido, relações sexuais com um colega, 13. já se não entende que, daí e sem mais, tenha concluído, como concluiu, que está afastada a sua inexperiência sexual para efeitos da aplicação desta norma! 14. O facto de a D..., com 14 anos de idade, ter tido, anteriormente, relações sexuais com alguém da sua idade (um colega), transforma-a, sem mais e necessariamente, numa menor “experiente” para lhe ser negada a protecção da citada norma quando é abusada, mais tarde, por alguém como o arguido, homem de 51 anos de idade e pai de família?! 15. A “experiência sexual” tem que abarcar uma série de conhecimentos, teóricos e práticos, que permitam à vítima, por exemplo, identificar/diagnosticar um processo de sedução em curso para o poder deter ou para poder resistir e, dessa forma, impedir o resultado último que com ele o agente visa (acto sexual de relevo/relações sexuais)?! 16. Mas nem o tribunal cuidou de apurar qual o grau de experiência ou de educação e maturidade sexual da menor D..., tendo-se bastado com aquela simples afirmação (relações sexuais anteriores com um colega…)! 17. Nem, sob o ponto de vista da sua experiência de vida, tendo em conta a sua conhecida idade e a sua origem social, humilde e desprovida, que conduziu, aliás, à sua institucionalização, a poderia considerar, como considerou, uma adolescente experiente, capaz de resistir à sedução do tio, na casa e na cama deste! 18. Razões pelas quais também aqui o Tribunal deveria ter, em última análise, condenado o arguido pela prática do crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do Código Penal, por se encontrarem preenchidos todos os seus elementos constitutivos! 19. Ao decidir como no Acórdão, violou, assim, o Tribunal a quo o disposto nos artigos 172.º, n.º 1, e/ou 173.º, do Código Penal.
**** O recurso, em 30/10/2013, foi admitido.
**** O arguido não respondeu ao recurso.
**** Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 20/12/2013, emitiu douto parecer em que acompanhou os argumentos avançados no recurso, salientando, em resumo, o seguinte: 1) “a expressão «que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência», consignada no artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, tem um conteúdo essencialmente fáctico e não dependente de qualquer decisão institucional”; 2) “é que este (conceito) e a punição que o mesmo sustenta advém, ao fim e ao cabo, da especial proximidade e dependência que o menor tem relativamente ao agressor”; 3) “o recorrido aproveitou-se da guarda da menor para a levar a praticar consigo os actos de cariz sexual que os factos provados demonstram”; Mais considerou que a matéria de facto dada como provada impede que se afaste, liminarmente, a inexperiência sexual.
Na sequência, concluiu que o arguido deve ser condenado pelo crime de abuso sexual de menor dependente na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, com execução suspensa por igual período, em conjugação com a obrigação de, nesse período, não ter, nem procurar ter, contactos com a referida D....
Foi cumprido, de seguida, o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Prosseguiram, então, os autos e, colhidos os vistos, teve lugar a conferência prevista na lei, cumprindo apreciar e decidir.
**** II. Decisão Recorrida: “(…) I. RELATÓRIO 1. O Ministério Público deduziu acusação (fls. 137 a 144), em processo comum e perante o Tribunal Coletivo, contra A..., filho de (...) e de (...), natural de (...), (...), nascido em 18 de setembro de 1958, casado, titular do bilhete de identidade n.º (...), desempregado, residente na Rua (...), (...); imputando-lhe a prática de: – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal; – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal.
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A acusação foi recebida nos seus precisos termos (fls. 174 e 175).
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O arguido não contestou.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
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SANEAMENTO 5. O Tribunal é competente.
A instância mantém-se válida e regular, não existindo ou sobrevindo qualquer questão prévia, nulidade ou exceção que cumpra...
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