Acórdão nº 372/11.1TBACB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 03 de Dezembro de 2013

Magistrado ResponsávelTELES PEREIRA
Data da Resolução03 de Dezembro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1.

Em 14 de Fevereiro de 2011[1], o Fundo de Garantia Automóvel (A. e Apelado nesta instância de recurso) demandou C… e M… (1º e 2º RR. e aqui Apelados), sendo que, mais tarde, no quadro de uma intervenção principal provocada suscitada concorrentemente pelos RR. e pelo A., acedeu à acção na posição de R. (a 3º R. aqui a Apelante) a Companhia de Seguros A…, S.A.

.

Pretende o Fundo de Garantia Automóvel realizar através desta acção o reembolso[2] – inicialmente contra os dois primeiros RR., depois também contra a Seguradora – do valor de €5.745,81 que pagou em função de um acidente de viação que gerou a intervenção indemnizatória do Fundo por recusa de cobertura pela Seguradora 3ª R.

Com efeito, esta (a Seguradora ora 3ª R.), confrontada com o acidente de viação aqui em causa (ocorrido em 18/08/2009, em Alcobaça) no qual foi interveniente o veículo …-IB, cuja riscos de circulação era suposto a A… cobrir, ao abrigo de um contrato de seguro do qual fora tomador/segurado o 1º R., recusou a Seguradora assumir essa responsabilidade indemnizatória por ter determinado, no respectivo processo de averiguação interno subsequente à participação do acidente, que o condutor do IB no momento do acidente, o 2º R., filho do 1º R., era, contra o que expressamente declarara o tomador 1º R. na celebração do contrato, o condutor habitual daquela viatura (e, logo, o verdadeiro segurado)[3].

1.1.

Os RR. originários (os 1º e 2º RR., os RR. indicados na p.i.) contestaram a acção conjuntamente invocando, no que interessa a este recurso, a existência e a validade do contrato de seguro e, logo, a não exclusão da responsabilidade indemnizatória da Seguradora, provocando a intervenção desta, na posição de R. (3ª R.), nos termos do artigo 325º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[4].

1.2.

Assim, intervindo como 3ª R., excepcionou a Companhia de Seguros A… a “nulidade” (a qualificação do desvalor em causa será tratada nesta decisão) do contrato de seguro celebrado com o 1º R. (no qual este se declarou condutor habitual da viatura IB) por haver este prestado, aquando dessa celebração, falsas declarações, induzindo em erro a Seguradora quanto a um elemento essencial para o cálculo do risco assumido, com reflexo no valor do prémio (o número de anos da habilitação para conduzir do condutor habitual)[5].

1.3.

Realizou-se, enfim, o julgamento documentado a fls. 204 e ss., a culminar o qual foi proferida a Sentença de fls. 214/225 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso-, condenando a Seguradora a satisfazer ao A. o montante peticionado[6].

1.4.

Inconformada, reagiu a R. Seguradora com a presente apelação, rematando as alegações adrede apresentadas com as conclusões que aqui se transcrevem: “[…] II – Fundamentação 2.

Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[7]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

2.1.

Os factos a considerar por esta instância, os fixados pelo Tribunal a quo – factos não contestados no presente recurso –, são os seguintes: “[…] 2.2.

A única questão colocada pelo recurso, rectius o fundamento deste, confronta-nos com a circunstância da decisão apelada ter desatendido – aqui no confronto entre a Seguradora e o Fundo de Garantia Automóvel, quando este último exerceu judicialmente a sub-rogação prevista no artigo 54º, nº 1 do DL nº 291/2007[8] – a invocação pela Seguradora, por via de excepção, de uma “invalidade” (gera esta aqui, como veremos a anulabilidade do contrato[9]) inicial, mas por ela desconhecida até ao acidente, do contrato de seguro tomado pelo 1º R. (pai do 2º R.). Com efeito, apurou-se que na formação desse contrato, no preenchimento da proposta de seguro posteriormente aceite pela 3ª R., o 1º R. se declarou, falsamente, como condutor habitual da viatura IB, no intuito de beneficiar o 2º R., seu filho, com condições mais favoráveis nesse seguro (concretamente com um prémio de menor valor), decorrentes de uma incidência não verdadeira afirmada na proposta – ser o condutor habitual a pessoa indicado na proposta, e ser ela encartada desde 1982 e, por isso, estatisticamente sujeita a um menor risco de sinistros – a par de uma incidência verdadeira e cuja relevância para a Seguradora era conhecida (ou intuída) e que foi ocultada nessa mesma proposta – ser o verdadeiro condutor habitual outro e tratar-se de pessoa encartada no próprio mês da celebração do contrato de seguro[10]. A racionalidade económica associada a este expediente é intuitiva. Trata-se, tão-só, de pagar menos pelo seguro, induzindo a seguradora em erro quanto aos elementos relevantes para o cálculo actuarial do risco[11].

A este respeito, tenha-se presente que o “[…] seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”[12]. Ora, esta lógica de transferência de um risco é integrada na economia do contrato através do conhecimento e da descrição do conteúdo exacto desse risco, ou seja, através da objectivação desse risco nos termos em que a seguradora aceitou assumi-lo. Daí que a imputação da concretização do risco passe pela aferição da presença, num determinado evento ou situação, dos concretos factores de risco descritivamente assumidos através do contrato[13]. Parecendo redundante, esta afirmação limita-se a caracterizar, na sua essência profunda, a lógica de funcionamento de um seguro[14].

2.2.1.

Importa reter neste recurso os elementos centrais do percurso argumentativo do Tribunal a quo que conduziram à decisão de responsabilizar a R. Seguradora pelo reembolso ao Fundo independentemente do desvalor que entendeu existir no contrato de seguro base desse mesmo reembolso. Ora, a este respeito, em sede de fundamentação jurídica, escreveu-se na Sentença apelada: “[…] Entende-se, em face do exposto, que, a tratar-se, no caso em apreço, de invalidade do seguro, tal invalidade consiste numa mera anulabilidade e não em nulidade.

Estabelece ainda o artigo 14º do DL 522/85, de 31.12 (regime jurídico do seguro automóvel obrigatório) que: ‘Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato (…), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro’.

Quer isto dizer que, nos contratos de seguro que tenham por objecto cobertura de riscos sujeitos ao regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a seguradora não pode invocar perante os lesados quaisquer exclusões ou anulabilidades não previstas na Lei do Seguro Obrigatório (no DL 522/85, de 31.12), estando-lhe vedado opor-lhes qualquer anulabilidade prevista em qualquer outra lei ou norma jurídica geral ou especial.

Infere-se assim do referido preceito que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a seguradora não pode livrar-se da sua obrigação perante o lesado mediante a invocação de uma mera anulabilidade não prevista no DL 522/85, como é o caso da consagrada no referido artigo 429º do Código Comercial.

E compreende-se que assim seja, uma vez que a instituição do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem em vista, como medida de relevante alcance social, a protecção directa (e célere) dos legítimos interesses e direitos das pessoas lesadas em consequência de acidentes de viação, o que postula um seguro em que, sendo a responsabilidade, em regra, garantida pela seguradora, vigore com a máxima amplitude o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais, do que resulta que só a nulidade, e não a anulabilidade do contrato de seguro (prevista no artigo 429º do Código Comercial), possa ser oposta aos lesados em acidente de viação, nos termos do citado artigo 14º do DL 522/85.

Do exposto resulta que não pode a ré Seguradora opor ao autor a excepção contratual integrante de anulabilidade do contrato de seguro, mantendo-se, por conseguinte, a vinculação decorrente desse mesmo contrato, respondendo a ré seguradora perante o autor pelos danos emergentes do acidente causado pelo veículo seguro, por força do contrato celebrado com o 1º réu.

Em consequência, haverão os 1º e 2º réus de necessariamente ser absolvidos do pedido contra si formulado.

[…]” (transcrição de fls. 223/224).

Numa primeira aproximação à ratio decidendi expressa pela primeira instância nos termos acabados de transcrever, haverá que reconduzir a situação ao seu enquadramento legal adequado, corrigindo a incorrecta determinação do Direito aplicável realizada na Sentença, enquanto questão de aplicação da lei no tempo numa situação de sucessão de leis no tempo. Referimo-nos ao regime...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT