Acórdão nº 327/10.3PGVNG.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 10 de Julho de 2013

Magistrado ResponsávelMARIA LEONOR ESTEVES
Data da Resolução10 de Julho de 2013
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso Penal nº 327/10.3PGVNG.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório Nos autos de processo comum com intervenção de tribunal singular nº 327/10.3PGVNG, distribuídos ao 4º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, o Sr. Juiz proferiu despacho a rejeitar a acusação particular por a considerar manifestamente infundada na medida em que não continha a descrição de todos os elementos necessários ao preenchimento do ilícito-típico que foi imputado ao arguido B…, devidamente identificados nos autos.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a sua revogação e substituição por decisão que aceite a acusação, para o que formulou as seguintes conclusões:1ºFoi deduzida acusação pelo Ministério Público contra B… pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.°, n.° 1, ai. a) e n.° 2, do Código Penal.

  1. Dada o temor comprovado de, no futuro, poder praticar outros factos de idêntica natureza, requereu-se a sua declaração como inimputável e a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de uma medida de segurança.

  2. O Mm.° Juiz a quo, rejeitou a acusação com a alegação que a mesma seria manifestamente infundada, por não conter os factos em que se traduz o dolo, enquanto elemento do tipo de ilícito subjetivo.

  3. Devido a isso, ordenou, após trânsito em julgado do despacho, a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins-tido por convenientes.

  4. Por não se conformar com o despacho em causa, vem o Ministério Público interpor o presente recurso requerendo a revogação do mesmo e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe data para julgamento;6°Em virtude do mesmo conter todos os elementos exigidos pelo art. 283°, n° 3, do CPP.

  5. Na verdade, na acusação deduzida pelo Ministério Público contra B… foram devidamente descritos os elementos objetivos integradores do crime de violência doméstica que lhe é imputado;8°Traduzidos em murros na face e no corpo da sua, então, companheira, C…, em insultos, ameaças e apertões no pescoço, em privações da liberdade e em situações de nudismo por si impostas.

  6. Foi ainda descrito que o mesmo sofre de doença afetiva bipolar maníaca, tendo a perícia psiquiátrica a que fora sujeito, concluído pela sua “inimputabilidade e perigosidade derivada de doença afetiva bipolar, encontrando-se, à data dos factos, em fase de descompensação maníaca da doença, o que o inibiu da capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos. Dadas as características da doença, ficou plasmado que factos da mesma natureza se poderiam repetir em períodos de descompensação clínica, sendo suscetível de, nessas alturas, representar perigosidade para si próprio e/ou para terceiros.

  7. No final da acusação, imputou-se-lhe o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.°s l, alínea a) e 2, do C. Penal e pugnou-se pela aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, p. e p. no n° 4 do citado normativo e duma medida de segurança, dada a sua manifesta perigosidade e o temor de que venha a cometer, no futuro, outros factos da mesma espécie.

  8. Estamos aqui no jugo da inimputabilidade, prevista no art. 20.°, n.° l, do Código Penal, segundo o qual: “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz de, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”12°Segundo o disposto no art. 91°, do C. Penal, quem for considerado inimputável nos termos do art. 20°, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

  9. Constatamos que os inimputáveis, quando perigosos, também podem ser agentes ativos de um ilícito criminoso, só que, em vez de uma pena, são passíveis de uma medida de segurança, cuja aplicação pressupõe a prévia dedução de acusação.

  10. Esta acusação, muito embora tenha de conter os elementos mencionados no art. 283°, n° 3, do CPP, não necessita de abarcar a declaração expressa do elemento subjetivo do tipo, constituída pelo dolo, que compreende o elemento intelectual ou cognitivo, traduzido na consciência e entendimento da possibilidade de lesão do bem jurídico e o elemento volitivo, traduzido no querer.

  11. No caso dos inimputáveis, existe uma perturbação que lhes afecta a capacidade de entender e de querer, impedindo-os de avaliarem a ilicitude dos actos praticados no momento em que actuam e se determinarem de acordo com essa avaliação.

  12. Esta incapacidade para avaliarem a ilegalidade dos seus atos e entenderem o caráter ilícito do fato, retira-lhes o juízo de culpa ou seja, o elemento intelectual do dolo.

  13. O arguido não podia, assim, querer praticar um ato ilícito típico, porque não estava capaz de avaliar essa ilicitude e se determinar de acordo com tal avaliação.

  14. E porque, na estrutura do dolo, o elemento intelectual antecede sempre o elemento volitivo, já que só se pode querer aquilo que previamente se conheceu, estando ausente este elemento, estará necessariamente irradiado o elemento volitivo.

    A exclusão do elemento volitivo, leva à exclusão da imputação dolosa, isto é, do dolo.

  15. Ora, se o dolo está ausente, não poderá ser descrito na acusação, sob pena de estarmos a efetuar a descrição da conduta de um imputável.

  16. Os elementos que terão de constar da acusação serão apenas: - a descrição objetiva dos factos típicos do ilícito de violência doméstica que é imputado ao arguido B…, da leitura da qual se possa deduzir que a sua ação foi resultado de um ato voluntário da sua vontade e não de causas acidentais ou imprevistas externas, - o substrato biopsicológico capaz de lhe excluir a culpa e, consequentemente, o dolo, consubstanciado na anomalia psíquica de que padece, - a verificação do seu efeito normativo, traduzido na incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação e - a possibilidade de vir a cometer outros factos da mesma natureza no futuro, capaz de evidenciar a sua perigosidade.

  17. Na verdade, só estes requisitos é que são exigidos para a sujeição do agente a uma medida de segurança, pelo que somente eles é que terão de ficar comprovados e, por isso, ser descritos na acusação.

  18. Constando os mesmos da acusação deduzida pelo Ministério Público, como acima se deixou exposto, a mesma não poderia ser rejeitada por manifestamente infundada, com base no art. 311.°, n.°s 2, al. a) e 3, al. d), do C. P. Penal, por conter todos os elementos exigidos pelo art. 283.°, n.° 3, al. b), do mesmo diploma legal para a submissão do agente a julgamento.

  19. A circunstância dos factos praticados pelo arguido B… ter resultado de um ato voluntário da sua vontade é facilmente extraída da forma como eles são descritos na acusação.

  20. O Juiz, no decurso do julgamento, deverá averiguar e demonstrar, a partir da descrição objetiva dos factos, que estes resultaram expressamente do desejo do agente e não de causas externas ao mesmo, insuscetíveis de serem controladas pela sua vontade, já que o julgador não pode remeter-se a um papel de inércia e inacção.

  21. Na verdade, o processo penal português é um processo de natureza acusatória, completado pelo princípio da investigação, através do qual o tribunal tem o poder - dever de, para além das prestações da acusação e da defesa, criar os alicerces essenciais à sua resolução.

    Por todo o exposto, a decisão do Meritíssimo Juiz de rejeitar a acusação deduzida pela ora recorrente é manifestamente ilegal, por violação dos arts. 283°, n° 3, ai. b) e 311° n. 2 al. a) e n.° 3, al. b) e d), ambos do C.P. Penal, devendo ser substituída por outra que aceite a acusação deduzida e indique data para julgamento.

    Não foi apresentada resposta.

    O recurso foi admitido, tendo o Sr. Juiz sustentado o despacho recorrido.

    Nesta Relação, a Exmª Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, aderindo à sua fundamentação.

    Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2, sem que tivesse sido apresentada resposta.

    Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.

    Cumpre decidir.

    1. Fundamentação É do seguinte teor, na parte que para aqui interessa, a acusação deduzida pelo MºPº contra o arguido: O arguido viveu em união de facto, como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de mesa, cama e habitação, com a ofendida C…, no período compreendido entre o ano de 1997 e o ano de 2001, primeiramente numa residência situada na Rua …, no … e, posteriormente, numa casa situada na …, na …, ambas nesta comarca de V. N. de Gaia.

      Dessa união, nasceu, no dia 4 de Fevereiro de 1998, um filho, chamado D…, atualmente com 14 anos de idade.

      O arguido B… sofre, desde o ano de 1995, de doença afetiva bipolar maníaca, que se caracteriza por crises maníacas quando a toma da medicação não é rigorosamente cumprida, alternando, ora com períodos de estabilidade clínica, ora com períodos de descompensação.

      Por esse motivo, devido a descompensações psicológicas, em datas que não foi possível concretizar, mas que se situaram seguramente no lapso temporal acima referido, sempre nas residências mencionadas, o arguido desferia frequentemente murros na face e no corpo da C…, sua companheira, insultava-a, tirava-lha a roupa, deixando-a despida, a si e ao seu filho, com o argumento de que tal comportamento se destinava às suas purificações, amarrava-a e apertava-lhe o pescoço com força, como se a pretendesse esganar.

      Na madrugada do dia 26 de Junho do ano de 2000, o arguido, ainda no interior da residência, depois de, para o efeito, lhe ter desferido vários murros na face e em todo o corpo, com a justificação de que assim a depurava, tirou toda a roupa à C… e ao filho de ambos, D…, incluindo os sapatos e envergou, na primeira, um cachecol … e, no segundo, uma camisola...

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