Acórdão nº 3834/2006-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 16 de Maio de 2006

Magistrado ResponsávelABRANTES GERALDES
Data da Resolução16 de Maio de 2006
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

I - L[…] demanda A.[…] em acção reivindicação, pretendendo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma fracção autónoma que a R. ocupa e a condenação desta na sua restituição.

Para o efeito alega que é proprietário da fracção onde habitou o seu avô, casado com a R. Mas, depois daquele ter falecido, a R. recusa-se a desocupar a fracção, apesar de não ter qualquer título que legitime essa ocupação.

A R. contestou alegando que ocupa a fracção ao abrigo de um acordo que foi celebrado entre a R. e o seu falecido marido (avô do A.) e a mãe do A. (e seu marido) que era, então, a proprietária da fracção reivindicada, nos termos do qual estes renunciavam ao direito de propor qualquer acção que visasse a desocupação da fracção enquanto, por seu lado, se mantivessem a ocupar uma outra de que a R. e seu falecido marido eram arrendatários.

O A. sempre soube do referido acordo e deu o seu consentimento à sua execução, pelo que a exigência de desocupação da fracção representa uma situação de abuso de direito. Além disso, invocou o direito de retenção por benfeitorias realizadas na fracção.

O A. apresentou articulado de réplica onde impugna a existência do acordo a que a R. alude, o qual, a existir, apenas vincularia os respectivos subscritores e não o A. A fracção reivindicada foi vendida pela sua mãe a terceira pessoa a quem o A., por sua vez, a comprou, não estando, por isso, vinculado a qualquer acordo que tenha sido estabelecido com a R. Impugnou ainda o direito de retenção invocado pela R.

Realizado julgamento, foi proferida sentença na qual foi reconhecido ao A. o direito de propriedade, negando-se, contudo, procedência ao pedido de restituição, tendo em conta a existência do comodato acordado entre a R. e a mãe do A.

Apelou o A. e concluiu que:

a) Houve erro na apreciação da prova no que concerne à resposta ao quesito 3º, a qual foi decidida com base no documento constituído pelo acordo reproduzido a fls. 115 dos presentes autos; b) Daquele acordo não resulta que a R. seja ou alguma vez tenha sido arrendatária do imóvel sito na Av. […], pois do contrato de arrendamento junto resulta que o único arrendatário era o avô do A., sendo que tal qualidade não se transmite; c) O acordo foi celebrado entre a mãe e o avô do A., com a anuência dos respectivos cônjuges e para vigorar apenas em vida do avô do A. ou enquanto aquele vivesse no imóvel identificado nos autos; d) Esse acordo foi respeitado pelo A. até meados de 2001, altura em informou a R. que teria se desocupar a fracção, ainda em vida do avô do A., que entretanto deixara de lá viver; e) O Tribunal partiu de premissas erradas para retirar conclusões que não correspondem à verdade, limitando-se a decidir com base naquele acordo e naquelas conclusões, devendo ser anulado o julgamento da matéria de facto; f) Por outro lado, não se trata de um contrato de comodato, atenta a cláusula 7ª; g) Foi violado o referido art. 1129° do CC o qual não tem aqui aplicação; o mesmo se diga do art. 1130° que se aplica ao contrato de comodato e não a este acordo que não poderá ser qualificado de contrato gratuito; h) Ao qualificar o referido acordo como contrato de comodato encontrando o suporte legal para a decisão recorrida no art. 1130° do CC, o Tribunal errou na norma aplicada ao caso concreto, devendo o referido acordo ser qualificado de comodato (sic), dado estar estipulado o pagamento de uma renda em contrapartida pela ocupação do imóvel em causa.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Questão prévia: Com as suas alegações o A. veio apresentar 3 documentos (certidão de casamento da R. com o avô do A., contrato de arrendamento relativo à fracção habitada pela sua mãe onde figura como arrendatário o seu avô e certidão de óbito deste).

Para além de não se verificar qualquer utilidade na junção dos documentos, a sua apresentação é subjectiva e objectivamente extemporânea, pois que, além de já existirem quando findou a audiência de julgamento (art. 524º do CPC), a sua apresentação nem sequer encontra justificação no teor da sentença recorrida, pois nenhum facto essencial ou argumento decisivo nela se surpreende, nos termos do art. 706º, de modo a justificar a apresentação de documentos com as alegações de recurso.

Por estes motivos, determina-se o desentranhamento dos referidos documentos.

Custas incidentais pelo apelante, com taxa de justiça de 1 UC.

III - Matéria de facto:

  1. Nas suas alegações o apelante invoca que houve erro de apreciação da prova na parte em que se qualificou a R. como locatária da fracção ocupada pela mãe do A. (resp. ao quesito 3º) Para além de tal facto não ser decisivo para o resultado desta acção, constata-se que a referida resposta foi motivada não apenas no documento de fls. 115 e 116, mas ainda em prova testemunhal que, não tendo sido registada, se mostra inacessível a este Tribunal.

    Por tais motivos, nos termos do art. 712º do CPC, não pode ser modificada a resposta por este Tribunal.

    De forma genérica, o apelante pretende ainda que se determine a anulação do julgamento.

    Porém, as críticas que dirige à sentença mais do que as respostas aos pontos da base instrutória, têm como alvo ilações que serviram para justificar a decisão de improcedência do pedido de restituição.

    Ora, não é para tais situações que se prevê a anulação do julgamento no art. 712º, já que as referidas ilações não vinculam de modo algum este Tribunal da Relação.

  2. Todavia, com vista a melhor sustentar a argumentação em redor da qualificação jurídica do acordo celebrado e das suas consequências, mostra-se conveniente tomar em conta a globalidade do documento de fls. 115, e não apenas o que resulta da resposta ao quesito 3º.

    Com efeito, tratando-se do documento através do qual os interessados expressaram a sua vontade relativamente ao regime a que obedeceria a ocupação da fracção reivindicada, não pode dispensar-se a sua análise integral. Aliás, o próprio A., para sustentar a modificação da sentença, serve-se de tal documento (cfr. §§ 7º, 9º e 15º e nas alíneas D), F) e H) das conclusões).

  3. Factos provados: 1. O A. é o titular inscrito (desde 26-8-99) da fracção autónoma designada pela letra "B" do prédio sito […] em Lisboa, correspondente ao r/c esq. […] - A); 2. A fracção autónoma foi adquirida pelo A., por compra, a Manuela […], tendo pertencido anteriormente à mãe do A., Maria […] (doc. de fls. 14) - B); 3. Entre a mãe do A. e a Ré, com os respectivos cônjuges à data, foi celebrado, em 1992 (24-4-92), um acordo escrito onde aquela renunciava a propor qualquer acção de reivindicação da propriedade da fracção autónoma contra a Ré, isto enquanto a mãe do A. não desocupasse a fracção sita na Av. […] 5° esq., em Lisboa, locada à Ré e seu falecido marido - 2° e 3; 4. Nos termos do documento de fls. 115 e 116, foi acordado que "os 1ºs outorgantes [mãe do A. Maria […] e seu marido] não promoverão qualquer diligência contra os 2ºs outorgantes [a R. e seu falecido marido, Luís […]], em conjunto ou separadamente ..., designadamente de reivindicação de desocupação ou de despejo" do andar dos autos "enquanto eles, 1ºs outorgantes, não desocuparem o 5º andar da Av. […], por acto exclusivamente alheio à sua vontade ..."; 5. Nele se refere ainda que "Luís […] é locatário, desde 1951, do 5º andar esqº do prédio sito […] em Lisboa" e que "no referido andar, com o consentimento do locatário, habitam a sua filha e 1ª outorgante Maria Teresa, desde 1961, e o seu genro e 1º outorgante, desde 1973" (cláusulas 1ª e 2ª); 6. Nas cláusulas 3ª e 4ª estabeleceu-se que "a 1ª outorgante Maria Teresa […], é proprietária do r/c esqº do imóvel sito em Lisboa […], e que "no referido andar, com o consentimento da proprietária, habitam seu pai e 2º outorgante, Luís […] e sua mulher, desde 1973"; 7. Nas cláusulas 5ª e 6º consignou-se que "1ºs e 2ºs outorgantes pretendem manter a situação descrita nas cláusulas anteriores".

    "Assim e para tanto, comprometem-se formalmente a nada fazer para alterar o actual status quo, pelo que: Os 1ºs outorgantes não promoverão quaisquer diligências contra os 2ºs outorgantes, em conjunto ou separadamente ... designadamente de desocupação, de reivindicação ou de despejo do r/c […], enquanto eles, 1ºs outorgantes, não desocuparem o 5º andar da Av. […] por acto exclusivamente alheio à sua vontade ..."; 8. "Os 2ºs outorgantes não promoverão contra os 1ºs outorgantes, em conjunto ou separadamente ... qualquer diligência, designadamente de reivindicação, de desocupação ou de despejo do 5º andar da […], enquanto eles, 2ºs outorgantes, não desocuparem o r/c […] por acto exclusivamente alheio à sua vontade"; 9. Finalmente, na cláusula 7ª fixou-se que "a renda do 5º andar[…] continuará a ser paga pelos 2ºs outorgantes como compensação pela ocupação do andar sito na R. […]"; 10. A mãe do A. vem habitando o locado [5º esq] pelo menos desde 1961, bem como o A. até sair de casa, com cerca de 30 anos de idade, provavelmente em 1992 - 4; 11. O A. sabia do acordo e com ele sempre se conformou até meados de 2001 - 5°; 12. Em meados de 2001 o A. informou a R. de que deveria desocupar o imóvel - 1°; 13. Foi colocada uma marquise na varanda da casa - C); 14. A R. pintou todas as paredes e colocou louça na casa de banho - 8º.

    III - Decidindo: 1.

    Apesar de o A. ter sido reconhecido como titular do direito de propriedade da fracção ocupada pela Ré, foi considerado improcedente o pedido de condenação da Ré na sua restituição.

    Tal decisão foi baseada no facto de a Ré ser comodatária da fracção, ao abrigo de um contrato outorgado com a mãe do A., anterior proprietária. Assim, o A., ao adquirir a mencionada fracção, teria ficado vinculado ao cumprimento de tal acordo, sendo legítima a ocupação por parte da Ré. Complementarmente foi dito ainda que a exigência de restituição reconduzir-se-ia a uma situação de abuso de direito.

    Tendo em conta as alegações e os poderes oficiosos em matéria de integração jurídica, cumpre responder fundamentalmente às seguintes questões:

    ...

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