Acórdão nº 0210509 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 22 de Maio de 2002 (caso NULL)
Magistrado Responsável | CLEMENTE LIMA |
Data da Resolução | 22 de Maio de 2002 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Acordam, precedendo conferência, na Relação do Porto: I1. Nos autos de instrução n.º ../.., do -.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da....., precedendo despacho de arquivamento do Ministério Público e instrução que atempadamente requereu, a assistente, MARIA....., interpôs recurso do despacho de não pronúncia (fls. 393-402) do arguido, CELESTINO....., extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões: 1.ª - A assistente requereu a abertura da instrução para verificação da existência de indícios dos seguintes factos essenciais: 2.ª - Assistente e arguido constituíram entre si a sociedade «G....., L.da», para abrir um «snack-bar» e «pub», com ambiente musical.
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- A assistente adiantou à sociedade 7.500.000$00, que foram depositados numa conta de depósito bancário.
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- O arguido aproveitou-se do acesso a essa conta bancária para efectuar levantamentos em proveito pessoal no valor de pelo menos 2.500.000$00.
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- Era o arguido quem controlava as receitas e despesas, quem efectuava os pagamentos aos fornecedores e recebia dos clientes, mas sem qualquer arquivo ou registo do dinheiro que entrava em caixa.
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- Na verdade, o arguido subtraía o dinheiro proveniente das receitas do estabelecimento.
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- Em resultado desse contínuo desvio de fundos, a G....., L.da não reembolsou o financiamento que obteve do Banco M....., avalizado pelos sócios, nem reembolsou os 7.500 contos de suprimentos feitos pela assistente.
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- E ainda se apropriou de 587.340$00, que recebeu da U....., como gerente da G....., L.da.
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- Na verdade, o arguido desfalcou a G....., L.da em benefício do seu consumo pessoal e de um negócio paralelo, o restaurante aberto ao lado, «O P.....».
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- O montante do dinheiro subtraído excede, numa estimativa cautelosa, € 50.000,00.
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- Na instrução, confirma-se a existência de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de abuso de confiança, nas circunstâncias indicadas pela assistente.
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- Acontece que o despacho recorrido procede a uma errada análise dos indícios colhidos.
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- Desde logo, a decisão recorrida dá desde logo como assente que o arguido entrou para a sociedade com 7.500.000$00, tal como a assistente, quando os extractos de conta revelam que, além dos 7.500.000$00 depositados pela assistente, só foram depositados mais 4.950.000$00.
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- Em seguida, dá como assente que as despesas com a instalação e o início do funcionamento do estabelecimento superaram em 500.000$00 a quantia de 15.000.000$00, como afirma o arguido, contrariando a assistente, que estima esse custo em 12.000.000$00, apenas baseada na palavra dele.
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- E classifica como despreocupação uma evidente recusa e obstrução sistemática do arguido a apresentar contas.
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- O facto descrito em 4., constitui crime de abuso de confiança.
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- Ora, a assistente sustenta essa acusação em fotocópias de cheques da conta do Banco A.... levantados pelo arguido, que apresenta com a queixa que inicia o inquérito.
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- Ao todo, em proveito pessoal do arguido, temos nos autos a comprovação, mais do que simples indícios, da subtracção de 2.656.180$00, retirados à conta da sociedade.
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- Inexplicavelmente, a decisão instrutória omite, pura e simplesmente, qualquer referência a todos os cheques de grande valor emitidos e recebidos pelo arguido, ao balcão ou depositando na sua conta do Banco B......
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- Concentra a atenção apenas em dois cheques de pequeno montante e revela, nas considerações que faz, a linha de pensamento que inquina a decisão instrutória.
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- Mas o arguido não se limitou a apropriar-se de parte do dinheiro inicialmente investido na G....., L.da e depositado na conta Banco A.....: em dois anos à frente do estabelecimento, como resulta inequivocamente dos elementos recolhidos no inquérito e na instrução, e é reconhecido na decisão instrutória, não depositou um centavo das receitas do estabelecimento nas contas bancárias da sociedade.
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- Com as despesas de instalação pagas pelo dinheiro inicialmente investido e pelo empréstimo de 3.000.000$00 do Banco M....., e sem pagar cerca de um ano de renda até ao encerramento compulsivo do estabelecimento da sociedade, o arguido apropriou-se de tudo o que excedeu o que pagou aos fornecedores a quem não ficou a dever. E a partir de Junho de 1997 deixou de entregar quaisquer elementos susceptíveis de permitir organizar a contabilidade ao contabilista.
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- Para não pronunciar o arguido, a decisão instrutória socorre-se das suas«explicações»: «... a explicação resultante da versão do arguido - o estabelecimento G....., L.da teve outras despesas para pagar e custos de exploração que consumiam e, por vezes, superavam, as receitas - não foi, indiciariamente, contrariada.» 24.ª - Antes de mais, uma coisa não tem a ver com a outra. Recolher ao fim do dia o dinheiro que está na registadora e depositá-lo na manhã seguinte na conta bancária da sociedade é uma prática comum às empresas geridas com honestidade, quer sejam muito lucrativas, pouco, ou mesmo nada.
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- Em segundo lugar, a explicação do arguido é contrariada pelos indícios recolhidos no inquérito e na instrução.
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- Designadamente, o tratamento contabilístico das despesas e receitas reportadas pelo arguido ao gabinete de contabilidade demonstra que a exploração do estabelecimento era lucrativa, com receitas de exploração sempre superiores às despesas de exploração, e indicia não apenas que o arguido se apropriou de receitas da sociedade, mas que essa apropriação é superior a 7.000 contos.
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- O arguido ainda se apropriou de 587.340$00, que obteve da U....., como contrapartida da exclusividade atribuída num contrato de distribuição.
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- Como gerente da G....., L.da, recebe um cheque e, em vez de o depositar em conta bancária da sociedade, deposita-o numa conta bancária dele ou levanta o valor ao balcão, nunca tendo reportado à sociedade a recepção dessa importância. Se a U..... não tivesse demandado a G....., L.da, a assistente nem teria sabido que ele tinha recebido esse cheque. E contra isto, temos a tranquila declaração do arguido, que não comprovou de modo algum, de que depois usou o dinheiro para pagar a fornecedores. Pois esta imaginativa «explicação» bastou para que o assunto nem sequer tenha merecido uma referência na decisão instrutória.
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- Por último, até há indícios nos autos do destino concreto dado pelo arguido aos dinheiros que subtraiu à G....., L.da.
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- São indícios de que resulta, por cada um e por acumulação, «uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança» (art. 283.º n.º 2, do CPP), «suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» (art. 308.º n.º1, do CPP).
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- Mas neste juízo deve ter-se em consideração que a instrução não é o julgamento, que o despacho de pronúncia não é o despacho de condenação.
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- Há que atender à menor densidade do termo «indício» quando se formula uma decisão instrutória, e à finalidade preliminar do inquérito e da instrução. A suficiência do indício para a decisão de pronunciar não deve ser confundida, ainda que inconscientemente, com a suficiência da prova para a decisão de condenar. Quando a lei refere que é suficiente que dos «indícios» resulte uma «possibilidade razoável», está a afirmar, e nesse sentido deve ser interpretada, que não é necessário que esses «indícios» sustentem um juízo de condenação, basta que sejam suficientemente consistentes para deles resultar...
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