Acórdão nº 846/20.3PBBRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 12 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelANT
Data da Resolução12 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO 1.

No âmbito do Inquérito nº 846/20.3PBBRG, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de Braga, da Procuradoria da República da Comarca de Braga, no qual é ofendida C. F. e arguido J. G., estando este indiciado da prática de um crime de violência doméstica, promoveu o Ministério Público que à mesma fossem tomadas declarações para memória futura em consonância com o disposto nos Artºs. 271º do C.P.Penal (1), e 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.

*2.

Porém, tal requerimento foi indeferido pelo despacho de 02/07/2020 do Mmº Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Braga, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, cuja cópia consta de fls. 19/21 Vº, nos seguintes termos (transcrição (2)): “Declaração para memória futura.

Pretende o MP a tomada de declarações para memória futura à vítima nos termos que faz a fls. 63, invocando ao caso o disposto no artigo 33.º/1 da Lei 112/2009, de 19/09.

Decidindo.

Dispõe o artigo 33º/1 da Lei 112/2009, de 16/09 (com a última redacção que lhe foi dada pela Lei 02/2020, de 31/03) que o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Como se afirma no acórdão do TRL de 09/11/2016, proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1.-3 “não decorrendo obrigatoriamente da lei a tomada de declarações para memória futura no caso de violência doméstica ou maus tratos, (como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor - artº 271º do CPP), o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura terá necessariamente que assentar no interesse da vítima”.

Tenha-se presente que a Assembleia da República discutiu recentemente (ver trabalhos parlamentares http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/14/01/017/2019-12-13/70?pgs=70&org=PLC) a questão de tornar obrigatória a tomada de declarações para memoria futura nos casos de violência domestica e não consagrou essa obrigatoriedade na lei.

E se virmos o Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, entregue no âmbito da referida actividade parlamentar, vemos que dele consta, entre o mais: “A relatora do presente parecer entende que existe uma contradição insanável entre o propósito que preside a estas iniciativas legislativas de proteger as vitimas de violência doméstica e a imposição que lhes é feita de prestarem declarações para memória futura. Se tal antecipação de prova visa proteger as vítimas, não deve ser admitida quando não corresponder à vontade das vítimas.

Por outro lado, caso se adoptasse tal solução, estar-se-ia, veladamente, a prejudicar o regime jurídico da recusa de depoimento contemplado no artigo 134º do Código de Processo Penal, segundo o qual “Podem recursar-se a depor como testemunhas: a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido”; b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação”.

Finalmente, não deve perder-se de vista o cuidado que é necessário quando se pondera o alargamento do regime jurídico das declarações para memória futura, não esquecendo que o principio da imediação é imposto pela própria estrutura do processo penal português e que lhe subjazem outros princípios tão relevantes como o do respeito pelo contraditório”.

Ora, sendo no caso concreto a intervenção do JIC a requerimento do MP, importa que o requerente aduza as razões subjacentes ao interesse da vítima que permitam, no quadro da tomada facultativa [“pode”], ao juiz aferir esse interesse protector e, perscrutando-o, realizar a diligência.

Pois resulta claro do texto de lei, face aos dizeres “pode”, tratar-se de diligência não obrigatória na fase de inquérito (ao contrário do que acontece nos termos do disposto no artigos 120º/2-d) e 271º/2 do CPP) pelo que as razões fundadoras da excepção ao princípio da imediação (consagrado no artigo 32º/5 da CRP e no artigo 355º do CPP) têm de ser apreensíveis, tanto que, nos termos do disposto nº 7, “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.

Como tal, no que importa ao presente caso, a faculdade [“pode”] de tomada de declarações antecipada tem se ser devidamente balizada, em face do seu caracter excepcional, e de forma a que a salvaguarda do princípio fundamental da imediação do julgador não saia fundamentalmente beliscado, sendo que, como se afirma no acórdão do TRL de 11/02/2012, proc. 689/11.5PBPDL-3, o critério de uma ponderação há-de encontrar-se entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo (cfr. artigo 16º/2 da lei 112/2009) e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.

Critérios que podem ser vistos à luz do entendimento do Exmo relator no acórdão supra citado que aqui se acolhem e a saber: A) – A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas; B) – A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão; C) – A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento; D) – A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência; E) – O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde psíquica da vítima; No caso, não se vislumbra complexidade do processo e não se vislumbra que face ao tempo da pretendida inquirição – logo no início do processo – seja previsivelmente evitada a repetição da inquirição. Na verdade, a tomada de declarações para memória futura logo no início do processo, sem que dele resultem produzidos outros elementos de prova, potencia uma inquirição sem um conhecimento amplo do “tipo social” (Inês Ferreira Leite, Anatomia do Crime, nº 10).

E também não estamos perante uma situação em que a dilação temporal entre o relato dos factos em julgamento e o tempo da prática dos factos, por via do factor esquecimento, exija o relato antecipado.

Assim, no caso concreto, salvo o devido respeito pela posição da Digna magistrada do MP, não vemos qualquer especialidade no caso concreto que importe um juízo positivo à antecipação da produção de prova, no caso à tomada de declarações para memória futura, na medida em que nenhum dos referidos critérios se mostra evidente nos autos.

Pois se bastasse que o requerimento contivesse a invocação do conceito de vítima e a indicação das disposições legais habilitantes ao pedido, então em todas as situações, portanto sem nenhuma especificidade do caso concreto, teria de ocorrer a tomada de declarações para memória futura desde que estivesse em causa investigação crime de violência domestica.

E não é pelo facto de o arguido ter sido sujeito a prisão preventiva que os dados de facto se alteram. Aliás, face ao referido estatuto coactivo, o afirmado pelo MP “o arguido ameaçou a ofendida de que [não] ficava assim” deixa de ter potencial afetante do estado emocional futuro da vítima, antes tranquilizador.

Tanto assim bastante que o MP não o valorizou, porquanto não decidiu medidas de protecção à vítima, nos termos dos artigos 29º a 31º da Lei 112/2009, apesar da Ficha RVD-1L resultar a afirmação de “risco elevado Assim, em face do requerimento do MP, a situação dos presentes autos não apresenta especificidade que importe derrogação do princípio da imediação do julgador.

Não se questiona que as vítimas de criminalidade violenta – e a violência doméstica é – sejam sempre vítimas especialmente vulneráveis (artigo 67º-A/1-b) e 3, do CPP) e como tal não se exija tratar-se de vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social (artigo 2.º/-b) da referida Lei 112/2009).

Mas o certo é que em face do que resulta do requerimento do MP não se vislumbra um quadro factual de gravidade tal que importe, sem mais, postergar o princípio da imediação.

E como recentemente decidiu o TRL, acórdão de 11/02/2020, proc. 689/19.7PCRGR-A.L1-5 ”Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.

– Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.

– Se, no caso concreto, não obstante a gravidade dos factos e a circunstância de, das fichas de avaliação, resultar que esta é uma situação sinalizada com risco levado, a ofendida saiu de casa e está agora a residir noutra localidade...

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