Acórdão nº 293/15.9T9BGC.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 12 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelAUSENDA GON
Data da Resolução12 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório 1. Por sentença proferida e depositada a 11-12-2019 no identificado processo, a arguida I. R.

foi julgada e condenada, como autora de um crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205.º n.º 1, do Código Penal, numa pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5, perfazendo o valor de € 1.250 (mil, duzentos e cinquenta euros) e no pagamento do pedido de indemnização cível contra si também deduzido no montante de € 66.390,26, acrescido de juros desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.

  1. Inconformada, a arguida interpôs recurso, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (transcrição) (1): «1- A arguida foi condenada em pena e no pedido cível, pelo que a acusação foi considerada completamente provada e o pedido cível procedente.

    2- No que interessa, a arguida foi acusada de transferir para a sua conta o montante de 58 000,00€, mais 7 398,00€, de duas contas bancárias da Caixa …, cujos titulares era ela própria e o seu tio/padrinho, de nome L. R., já falecido, após a morte deste, em consequência de queixa que foi apresentada pela cabeça-de-casal, irmã do falecido.

    3- Resumidamente, em contestação, alegou a arguida que tais quantias lhe tinham sido doadas pelo falecido em 2011 e após a morte da esposa, também sua tia e madrinha, que lhas entregou e ela aceitou, através de ato válido e por isso se apropriou de tais quantias de forma legítima, convencida que estava e está que o dinheiro lhe pertencia e pertence. Consequentemente, não praticando assim qualquer crime.

    4- A douta sentença padece dos seguintes vícios: - O pedido cível concluiu de forma ilegal; - Nulidade por falta de fundamentação no que diz respeito à matéria de facto dada como provada;- Nulidade da sentença por a mesma não fazer qualquer referência aos factos alegados na contestação oferecida pela arguida; - Incorreta decisão sobre a matéria de facto, já que os factos dados como provados estão incorretamente julgados pois não existiu prova nesse sentido;- Violação do princípio in dubio pro reo por utilização excessiva do instituto da presunção. - Corretamente apreciada a prova, deveriam ter sido dados como provados os factos da contestação e nessa medida a arguida absolvida.

    5- O recurso versa assim matéria de facto e de direito, tendo sido violado, além do mais, os artigos 374º, 375º, 379º e 127º do C.P.P., bem assim como o artigo 32º nº2 de C.R.P.

    6- Consideramos que as concretas provas existentes, impõem decisão contrária.

    VEJAMOS: 7- A queixosa demanda como cabeça de casal, logo é contra a lei condenar a arguida a pagar à demandante qualquer quantia. No limite, a condenação deveria ser “condenar a arguida a entregar à herança a quantia de …” através da cabeça de casal.

    8- A arguida em prazo e de forma processualmente correta, apresentou contestação e rol de testemunhas, peça que ocupa 6 longas páginas, vertidas em 32 artigos em que não se limita a negar os factos da acusação e oferecer o mérito dos autos e tudo o que em julgamento se provar a seu favor, como também e principalmente; 9- Alega factos que, a comprovarem-se, afastariam por completo a tese da acusação, tese essa (da acusação) que consiste em que a arguida se apropriou ilegitimamente da totalidade das quantias depositadas em contas bancárias, em que ela própria figura como titular, apenas porque assim era para que a sua sobrinha/arguida pudesse movimentar essas contas, em proveito do falecido, caso fosse necessário.

    10 - A arguida traz ao processo uma nova realidade, a sua realidade, a sua tese, a sua defesa e em abono desta alega: 11- Transferiu a totalidade do dinheiro das contas em que também era titular conjuntamente com o seu padrinho, porque este lhas doou em vida, no ano de 2011, logo após a morte da tia, através de uma doação materialmente e formalmente válida.

    12- Alega a arguida que o padrinho lhe deu aqueles montantes. Sabermos se a doação é ou não válida, é assunto que deve ser discutida nos meios cíveis ou no inventário que já requeremos e cuja prova dos seus tramites já consta do presente processo. Neste momento existe inventário para partilha dos bens do falecido L. R., correndo paralelamente com este processo.

    13- Por isso assim o requeremos, sendo que o tribunal, erradamente, entendeu indeferir a nossa pretensão de remeter este assunto para os meios cíveis.

    14 - Nesse sentido a arguida atuou convencida que o dinheiro lhe pertencia, tendo agido assim de forma legítima e, em consequência, sem consciência da ilicitude da sua conduta e convencida que estava que não violou a lei.

    15 - Que ambos, arguida e padrinho, a convite deste, se deslocaram à Caixa ..., dando o falecido ordens para abrir novas contas, cujos titulares seriam os dois e por vontade dele, transferindo para estas mesmas contas o montante de cerca de 60.000,00€ de uma outra conta só titulada pelo falecido.

    16 - Esta doação foi aceite pela arguida, que aceitou nesse momento o dinheiro em causa, podendo dele dispor, pois o padrinho o pôs à sua disposição e em consequência considerando-se dona de tais montantes por lhe terem sido dados (pelo padrinho), conforme vontade prévia que manifestou.

    17 -Temos assim uma doação de coisa móvel conforme a lei: vontade, manifestação e declaração de dar, declaração de aceitação, abertura de novas contas com dois titulares, colocação na disponibilidade da arguida. Tradição da coisa. Declaração de dar, declaração de aceitar e tradição. Doação válida.

    18 - Tudo isto foi alegado pela arguida na contestação que apresentou, de forma objetiva, pormenorizada e até exaustiva, bem assim como também foi alegado na mesma peça os motivos pelos quais o doador tomou tal atitude: 19 - Em consequência da relação de parentesco, de especial amizade, intimidade, cumplicidade, pelo facto de a arguida ter sido a sua principal tratadora e antes também da sua esposa e madrinha, porque esta (arguida) sofre de uma doença incurável – esclerose múltipla – que lhe reduzirá os anos de trabalho e de proveito, porque o falecido L. R. quis honrar a palavra da esposa pré-falecida no sentido de que a casa de habitação de ambos ficasse para a arguida e como a casa precisasse de obras, dar-lhe-iam o dinheiro necessário para a arranjar e ainda porque, segundo as palavras de algumas testemunhas, a I. R., como era carinhosamente tratada pelos padrinhos, “era a filha que eles não tiveram”, porque de facto não tiveram filhos e com eles viveu desde criança.

    20 - Arguida que optou por ficar solteira e sem filhos para poder tratar dos padrinhos, ao ponto de o falecido L. R., nos últimos tempos, como precisasse de mais cuidados em virtude da idade e doença, permanecia alguns dias e noites em casa da arguida, tendo, inclusive, falecido na residência desta na cidade de Bragança.

    21 - Que o L. R. fez testamento em 2014, ano em que morreu, não tendo no mesmo contemplado a quantia em causa porque já a tinha doado em 2011 à arguida.

    22 - Que o primo A. R., filho único de uma irmã do L. R., sempre se comportou no processo não como testemunha mas como parte, pois foi ele que praticou os atos mais relevantes em nome da mãe cabeça de casal, exatamente porque nisso tinha interesse direto, já que quanto maior fosse a quota que recebesse a cabeça de casal, mais beneficiado ele ficaria, logo nunca terá uma atitude de testemunha, antes terá sempre uma atitude de parte interessada e como tal o seu depoimento só poderá ser parcial.

    23 - Que o L. R. várias vezes em vida declarou que os montantes em causa eram da arguida por lhos ter doado.

    24 - Tudo isto foi alegado na contestação. Sobre estes factos o tribunal não se pronunciou. Nem uma palavra.

    25 - Na verdade, a contestação alega factos, pormenoriza-os, descreve-os, contextualiza-os, traz uma nova realidade ao processo, confronta o julgador com essa nova realidade, as circunstâncias e o porquê.

    26 - Logo, deveria o tribunal pronunciar-se quanto a estes factos até porque arrolamos 4 testemunhas que foram ouvidas durante 4 dias. Mas sobre isto o tribunal disse nada.

    27 - Ao invés, se a contestação se limitasse a negar a acusação, ao dar como provados os factos desta, o contrário até poderia ficar demonstrado. Mas não foi o que aconteceu. A arguida, oferece a sua realidade, oferece factos e uma vez julgados procedentes (como na verdade aconteceu) improcederia a acusação. A sentença omite completamente a existência da contestação e quem a ler (a sentença), fica convencido que contestação não existiu.

    28 - A douta decisão sofre assim de vício de nulidade, com todos os efeitos legais: - A decisão é nula quando não enumera os factos que considera provados e os que considera não provados.

    - O Juiz ao proferir sentença, tem sempre de especificar o motivo porque entende que o arguido deve ser condenado, motivação essa de facto e de direito. Que como decorre literalmente, a motivação factual reporta-se aos factos que estão em causa quer na acusação quer na contestação, pelo que tem sempre de existir um qualquer tipo de referência aos facos que não estejam provados (da contestação).

    -Tem sempre de existir uma referência a factos e uma justificação dos motivos porque se entende provados e não provados, ainda que essa referência não seja completamente exaustiva.

    29 - Quando assim não acontece, como é indubitavelmente o caso, estamos perante a violação do Art.º. 374º nº2 e 379º nº1 do C.P.P., o que conduz a nulidade da sentença.

    FALTA DE PROVA/FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO 30 - A acusação apresenta 8 testemunhas e remete para o conjunto dos documentos e para o depoimento dessas testemunhas a sustentação da decisão.

    31- Nada temos a opor à prova dos factos 2, 3, 4, 5, 7 e 8 da acusação. Já não é assim quanto aos restantes. Entendemos que a prova apresentada está longe de ser suficiente para poder resultar como provado a totalidade do facto 1, e principalmente o facto 6, este absolutamente decisivo.

    32 -Tudo se resume ao seguinte confronto entre a acusação e a defesa: a...

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