Acórdão nº 715/19.0PCBRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 14 de Setembro de 2020
Magistrado Responsável | ANT |
Data da Resolução | 14 de Setembro de 2020 |
Emissor | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO 1.
No âmbito do Inquérito nº 715/19.0PCBRG, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de Braga, da Procuradoria da República da Comarca de Braga, o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum, e perante tribunal singular, contra H. M., casado, farmacêutico, filho de J. A. e de M. C., natural de ..., Amares, nascido a 22 de Janeiro de 1973, residente na Rua ..., Braga, portador do Cartão de Cidadão nº ..., imputando-lhe a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nº 1, al. b), do Código Penal.
*2.
Tendo os autos sido distribuídos ao Juízo Local Criminal de Braga, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a Mmª Juíza a quo proferiu o despacho que consta de fls. 314 /315 Vº, no qual concluiu que, para além do crime de crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nº 1, al. b), do Código Penal, que ao arguido foi imputado pelo Ministério Público na acusação pública, a factualidade ali descrita é também susceptível de consubstanciar a prática, pelo mesmo arguido, de um crime de violação, p. e p. pelo Artº 164º, nº 1, do Código Penal, alterando, dessa forma a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.
*3.
Inconformado com tal despacho, dele veio o arguido interpor o presente recurso, constante de fls. 316 / 327 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição (1)): “I. O tribunal recorrido, finda a fase de inquérito e recebidos os autos pela meritíssima juiz de direito, através do despacho recorrido pronunciou-se sobre uma “questão prévia”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, doravante CPP, tendo procedido a uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes na acusação decidindo que ao arguido também deve ser imputado o crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º, nº 1 do Código Penal, em concurso efectivo, com o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) do Código Penal.
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Com o devido respeito, que é muito, a decisão recorrida foi proferida completamente à margem dos mais basilares princípios do processo penal, designadamente da conjugação do princípio da oficialidade, da acusação e da vinculação temática, bem como, viola as disposições/garantias consagradas na Constituição da República Portuguesa, no Código de Processo Penal, no Estatuto do Ministério Público e, ainda, contraria o sentido do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, conforme resulta das conclusões infra elencadas no presente recurso.
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O princípio da oficialidade está ligado à legitimidade para promover o processo no sentido de investigar a prática de uma infracção e a decisão de a submeter ou não a julgamento e de acordo com este princípio, o exercício da acção penal é competência do Ministério Público, enquanto entidade pública representante do Estado.
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O princípio da acusação representa a base do modelo processual penal adoptado no nosso ordenamento jurídico, expressamente consagrado no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP.
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O princípio do acusatório implica uma distinção entre o órgão acusador e o órgão julgador e, por outro lado, a estrutura acusatória também implica que é pela acusação, proferida pelo Ministério Público ou, se for o caso, pelo Assistente, que se define e fixa o objecto do processo.
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O princípio da acusação contém, assim, duas dimensões primárias, por um lado, por força deste princípio há uma distinção entre o órgão acusador e o órgão julgador e, por outro lado, determina que após proferida a acusação – eventualmente o despacho de pronúncia – fiquem delimitados e fixados os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado.
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Na verdade, a competência e a independência do Ministério Público, para dirigir o inquérito e proferir a acusação, encontra-se dispersa por vários preceitos normativos da Constituição, do Código de Processo Penal e, ainda, do Estatuto do Ministério Público, sendo que, in casu, salienta-se o disposto nos artigos 32º, nº 5 da CRP, 53º, nº 2, al. b) e c) e 283º, ambos do CPP e 1º e 4º, nº 1, als. d) e e) do Estatuto do Ministério Público.
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Sendo certo que, a Excelentíssima Sraª Procuradora-Adjunta, ao ter proferido acusação pública, imputando ao Arguido/Recorrente “na forma consumada e em autoria material: - Um crime de violência doméstica, do artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal.” delimitou e fixou o objecto do processo quanto à factualidade e enquadramento jurídico penal da conduta do arguido e, em consequência, balizou os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado.
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A acusação, ou em caso de abertura de instrução, o despacho de pronúncia, fixam o objecto do processo, ditando aquilo a que a doutrina e a jurisprudência conhecem como vinculação temática.
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Assim, a vinculação temática, enquanto garantia de defesa do arguido, configura-se na manutenção do objecto do processo desde que é proferida a acusação até ao trânsito em julgado da sentença.
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O legislador foi bem claro ao estatuir três momentos nos quais, mediante o preenchimento de certos requisitos, é possível alterar o objecto do processo após ter sido proferida a competente acusação e, com efeito, é permitida a alteração dos factos nos seguintes momentos processuais: o primeiro momento ocorre na fase de instrução – nos casos em que a mesma é realizada e advém nos termos do artigo 303.º do CPP –, o segundo momento ocorre durante a fase de julgamento e encontra-se expressamente previsto nos artigos 358º e 359º do CPP e o último momento acontece já em fase de recurso nos termos do disposto no artigo 424º, nº 3 do CPP.
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Saliente-se que, foi nestes momentos processuais que o legislador consagrou a oportunidade para, mediante os pressupostos constantes nos artigos 303º, 358º ou 359º e 424.º, todos do CPP, operar-se uma alteração do objecto do processo a qual pode tratar-se de uma alteração substancial ou não substancial do mesmo.
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Quando estamos perante uma alteração substancial dos factos, o juiz não pode ter em conta os factos para efeitos de pronúncia ou condenação – conforme consta dos artigos 303º, nº 3 e 359º, nº 1 ambos do CPP – podendo o facto dar origem a um novo processo quando o facto seja autonomizável ao processo – artigo 303º, nº 4 e 359º, nº 3, ambos do CPP.
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Por outro lado, quando não estamos perante uma alteração substancial dos factos, o juiz oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, e concede ao arguido, a requerimento, um prazo de preparação da defesa – nos termos dos artigos 303º, nº 1 ou 358º, nº 1, ambos do CPP.
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De todo modo, com referência ao momento em que é possível efectuar-se uma alteração do objecto do processo é necessário salientar que, o legislador pretendeu que a alteração do objecto não ocorresse sem que o juiz tenha tido contacto directo com a produção de prova.
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Aliás, é o que resulta da leitura e interpretação dos artigos 303º, 358º, nº 1 e 424.º, n.º 1 e 3 do CPP, isto é, estes preceitos normativos estipulam que a possibilidade de alteração do objecto do processo ocorre no decurso da respectiva fase processual, nas quais já existe a produção de prova e o juiz já se encontra a decidir sobre o mérito do thema decidendum.
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É o que resulta da análise ao sentido literal e o espírito normativo das disposições da Constituição da República Portuguesa, do Código de Processo Penal e do Estatuto do Ministério Público, bem como dos princípios que enformam o nosso sistema processual penal.
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Sendo que, do sentido literal do artigo 311º, nº 1 do CPP não se extraí que o tribunal a quo poderia ter efectuado uma alteração da qualificação jurídica nesta fase, até pelo contrário, uma vez que o nº 2 do artigo 311º do CPP estipula expressamente em que termos é que o juiz pode efectuar o controlo da acusação.
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Admitir a possibilidade de que nesta fase processual o juiz possa proceder ao controlo da acusação, nomeadamente na parte em que procede à alteração da qualificação jurídica, in casu, acrescentado um crime diverso, cuja moldura penal é superior ao crime pelo qual o Ministério Público havia procedido à acusação, para além de constituir uma afronta aos princípios que estruturam o nosso código de processo penal, também viola o disposto nos artigos 32º, nº 5 da CRP, 53º, nº 2, al. b) e c), 283º e 311º do CPP e 1º e 4º, nº 1, als. d) e e) do Estatuto do Ministério Público.
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Sendo certo que, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores vai precisamente neste sentido, conforme os sumários de vários Acórdãos citados na motivação do presente recurso.
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Na nossa modesta opinião, a opção legislativa foi claramente de prever em que momentos é que o juiz pode efectuar o controlo da qualificação jurídica constante da acusação, sendo certo que nenhum destes momentos é o da fase de saneamento do processo a que alude o artigo 311º do Código de Processo Penal.
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A única interpretação consentânea e coerente com o nosso sistema processual penal será, assim, que a alteração da qualificação jurídica pelo juiz apenas pode ocorrer de forma excepcional após este ter contacto directo com os factos e a produção de prova, só aqui é que já se poderá pronunciar sobre o mérito dos factos, justificando-se esta alteração pela proximidade do julgador com a realidade em que os factos ocorreram e a necessidade de os ajustar ao devido enquadramento jurídico-penal.
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Admitirem-se despachos no sentido e teor do despacho recorrido, levantaria diversas questões, tais como, patrocinar-se uma desvalorização do papel do Ministério Público no nosso processo penal, é que, para além do desvalor do enquadramento jurídico efectuado pelo despacho de acusação, permite-se um flagrante conflito de competências...
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