Acórdão nº 1406/18.4T8OLH-E.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelV
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Processo n.º 1406/18.4T8OLH-E.E1 * Nestes autos de reclamação de créditos que correm por apenso ao processo de insolvência em que foi declarada insolvente “(…) – Investimentos Turísticos do Algarve, S.A.”, foi proferido despacho saneador no qual se decidiu, entre o mais, reconhecer o crédito de “(…), Lda.”, no valor de € 474.092,65, como crédito comum.

“(…), Lda.”, interpôs recurso do despacho saneador, tendo formulado as seguintes conclusões:

  1. Na impugnação deduzida a recorrente alegou factos que, em seu entender, seriam demonstrativos que, in casu, o cumprimento do contrato pela massa insolvente não seria um direito potestativo do AI, mas antes um dever vinculado.

  2. Designadamente, e conforme decorre dos factos assentes, que na data da declaração de insolvência já as partes haviam cumprido todas as obrigações decorrentes do contrato-promessa celebrado, isto é, pagamento da totalidade do preço e entrega do imóvel, apenas se aguardando a marcação da escritura pública de compra e venda pela insolvente, que devia ter sido realizada 60 (sessenta) dias após a entrega do imóvel, que ocorreu em 31/08/2017 (ponto 9 e 10 dos factos assentes).

  3. Razão pela qual, a recorrente pugnou, em primeira linha, pelo cumprimento do contrato, ou seja, realização da escritura pública de compra e venda, e só subsidiariamente pelo regime do sinal em dobro.

  4. Conforme melhor se alcança do contrato-promessa junto aos autos e da matéria de facto dada como provada, à data da declaração de insolvência a recorrente já havia cumprido todas as obrigações que para si decorriam do contrato-promessa celebrado.

  5. Apenas aguardava que a insolvente agendasse a escritura pública de compra e venda.

  6. No caso em apreço não estavam preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 102º do CIRE para que ao administrador assistisse a faculdade potestativa de optar entre executar o contrato ou recusar o seu cumprimento.

  7. Atento o cumprimento pela recorrente das suas obrigações, o administrador estava vinculado ao cumprimento do contrato, sendo abusiva a opção pela recusa do cumprimento.

  8. O âmbito normativo do artigo 102º do CIRE circunscreve-se aos contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento por qualquer das partes, dependendo, assim, a sua aplicação da verificação de um requisito positivo e de um requisito negativo. O requisito positivo é a existência de um contrato bilateral celebrado entre o insolvente e um terceiro. O requisito negativo é o de, à data da declaração de insolvência, não ter ainda havido cumprimento total por parte de nenhum dos contraentes – o que, como vimos, in casu, não se verifica.

  9. A contrario, nos contratos bilaterais totalmente cumpridos, pelo menos por uma das partes, à data da declaração de insolvência, não assiste ao administrador o direito potestativo de optar pela execução do contrato ou recusar o seu cumprimento.

  10. Neste caso, o cumprimento do contrato é antes um dever vinculado, pois o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas à outorga do contrato definitivo.

  11. Deveria, portanto, o administrador de insolvência cumprir o contrato prometido em causa nos precisos termos contratados.

  12. Tanto mais que, a opção pelo cumprimento, ou não, dos contratos-promessa de compra e venda deve, pois, ter em conta o custo/beneficio que cada uma dessas opções traz para a massa insolvente e respectivos credores.

  13. Na situação em apreço, a opção pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda faz operar a redução do passivo da Massa Insolvente com a “eliminação”, pelo menos parcial, do direito de crédito do aqui recorrente.

  14. Certo é que, o tribunal a quo simplesmente não se pronunciou sobre tais factos, apenas limitando a sua apreciação à questão do sinal em dobro curou e do direito de retenção, mas não do pedido formulado a título principal – cumprimento do contrato – como era sua obrigação (artigo 608.º do CPC).

  15. Pelo que a decisão em crise terá que ser declarada nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia.

  16. Sendo revogada a mesma, e substituída por outra que conheça os fundamentos do direito invocado pela recorrente quanto ao cumprimento do contrato, nos termos acima expostos, ordenando, atento o pagamento integral do preço e a entrega do imóvel, a marcação da escritura pública de compra e venda.

    Caso assim se não entenda, o que não se concede, Quanto à decisão sobre a matéria de facto q) Por falta de resposta à matéria da impugnação e por se afigurar com interesse para a decisão, o tribunal a quo também devia ter dado como assentes os seguintes factos alegados na impugnação: - “A reclamante fez obras no bem imóvel de modo a torná-lo habitável”; - “O imóvel é utilizado para fins habitacionais”; - “O imóvel foi adquirido para uso próprio e não com o escopo de revenda;” - Apesar da traditio, a escritura nunca foi marcada pela promitente vendedora, conforme contratado.” r) É nesta parte da matéria de facto que se discorda da decisão em crise, pois tais factos deviam ter sido dados como provados.

    Valor do crédito da reclamante s) Sem renunciar ao sobredito quanto ao cumprimento do contrato-promessa, subsidiariamente a recorrente reclamou a quantia de € 240.000,00, correspondente ao dobro do sinal pago no âmbito do contrato-promessa de compra e venda celebrado.

  17. Contrariamente ao entendimento vertido na decisão em crise, entende a recorrente, pelas razões acima aduzidas, que na data da declaração de insolvência da promitente compradora, ora recorrente, do ponto de vista substantivo, já havia cumprido a totalidade das obrigações que para si decorriam do contrato-promessa celebrado, apenas aguardava o agendamento da escritura para proceder à respectiva formalização do contrato definitivo.

  18. Tendo havido entrega do imóvel e pagamento da totalidade do preço antes da declaração de insolvência, não tem aplicação o disposto nos artigos 102º e seguintes do CIRE.

  19. O administrador não tinha o direito de recusar o cumprimento do contrato definitivo, estando, ao invés, vinculado ao seu cumprimento.

  20. Essa recusa do administrador configura a prática de um acto ilícito e culposo.

  21. Razão pela qual, in casu, terá lugar a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil.

  22. Devendo ser reconhecido à recorrente o valor correspondente ao sinal em dobro, isto é, € 240.000,00.

  23. Recusando o cumprimento do contrato num caso como o presente, em que a promitente compradora já havia pago a totalidade do preço, sempre se dirá que o administrador agiu em manifesto abuso de direito, quer na sua vertente objectiva quer na subjectiva.

    a

  24. Dúvidas não restam de que a opção pela recusa do cumprimento do contrato, no alegado exercício do direito consagrado no artigo 102º do CIRE, teve o propósito exclusivo de prejudicar a recorrente, com o correlativo benefício ilegítimo para a massa insolvente, para além de que, num caso como o presente, essa opção do administrador excede manifestamente o uso normal desse direito que lhe é concedido pelo n.º 1 do artigo 102º do CIRE.

    ab) Atendendo ao manifesto abuso de direito do administrador, sempre a recusa de cumprimento do contrato se traduziria num acto ilícito e culposo e, por essa via, subsumível ao regime do artigo 442º do CC.

    Sem prescindir, ac) Se é certo que já existia mora da promitente vendedora, não ficou provado que a recorrente já tivesse perdido o interesse no negócio (muito pelo contrário) ou que tivessem dado à promitente vendedora o derradeiro prazo razoável para o comprimento do contrato promessa (cfr. artº 808º, nº 1, do Cód. Civil).

    ad) Por isso considerou o tribunal a quo que, à data da declaração de insolvência, ainda não tinha ocorrido o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

    ae) Entendeu que a situação é de possível aplicação da orientação fixada no AUJ nº 4/2014, desde que os restantes pressupostos estejam reunidos.

    af) Neste caso, provou-se que: - A recorrente celebrou um contrato promessa de eficácia meramente obrigacional (cfr. número 6 dos factos provados); - Sinalizou o contrato promessa (cfr. número 8 dos factos provados, sendo que as quantias têm de ser consideradas como “sinal” por força do disposto no artigo 441.º do Código Civil); - E também obteve a traditio da coisa (a fracção autónoma) – cfr. número 10 dos factos provados.

    ag) Concordando e reforçando esta fundamentação, acrescentamos que o aludido contrato mantinha-se em mora de cumprimento por parte da insolvente, conforme alegado na impugnação e que deverá ser dado como provado, sendo pacífico que não tinha ocorrido antes da declaração de insolvência extinção do contrato por resolução contratual – artigos 432º a 436º do Código Civil.

    ah) Estamos perante um contrato promessa com mera eficácia obrigacional, em que a recorrente tinha obtido a tradição do bem imóvel prometido vender pela insolvente em data anterior à sentença declarativa da insolvência da promitente vendedora.

    ai) Por força do disposto no artigo 441.º do Código Civil, as quantias entregues pela recorrente devem ser consideradas como “sinal”.

    aj) E havendo incumprimento imputável à promitente vendedora, neste contrato, de efeitos meramente obrigacionais mas com traditio da coisa prometida vender, coloca-se a questão de se saber se tem aplicação ao caso o disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

    ak) Não se ignora que nesta matéria a jurisprudência do STJ se tem dividido: - Em sentido da não aplicação do artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, por exemplo o acórdão do STJ de 21-06-2016, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “Não é, assim, aplicável ao caso vertente de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional no contexto da insolvência o artigo 442.º do Código Civil. E o próprio artigo 755.º, n.º 1, alínea f), que para ele remete terá que ser interpretado com cautela tendo em conta a radical diferença de situações”; - Em sentido da aplicação, por...

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