Acórdão nº 14563/19.3T8SNT.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 02 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelABRUNHOSA DE CARVALHO
Data da Resolução02 de Julho de 2020
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Nos presentes autos de recurso, acordam, em audiência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: No Juízo Local Criminal de Sintra, por sentença de 13/01/2020, constante de fls. 245/262, foi a Arg.

[1] AA, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 57/58[3]) condenada nos seguintes termos: “… Face ao exposto, julgo a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, decido:

  1. ABSOLVER a arguida AA da prática, como autor material, do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, de que se encontrava acusada; B) CONDENAR a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 300,00 (trezentos euros).

    * Custas criminais pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s …”.

    * Não se conformando, a Arg.

    interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 267/279, com as seguintes conclusões: “… A. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos autos, a qual condenou a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis).

  2. O tribunal a quo deu, designadamente, como provado que: ...

  3. Porém, importa, desde logo, atender ao caso concreto e analisar a questão de saber qual a fronteira entre poder-dever de educar e o crime de ofensa à integridade física, D. O artigo 1878.º do CC estabelece como conteúdo das responsabilidades parentais, “velar pela segurança e saúde (...), prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los (...) e administrar os seus bens”.

  4. Do qual se destaca o poder dever de educar que encontra assento no artigo 1885.º do CC e que PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (código civil anotado; Vol. V) definem como “educar é (...) preparar o menor para a autonomia, para a independência (...) mas preparar para a vida numa sociedade civilizada, que tem regras necessárias de conduta individual e social”.

  5. E no qual se poderá incluir o “poder de correção” numa perspetiva restritiva, que depende do preenchimento de um conjunto de exigentes pressupostos, a fim de garantir os direitos e a dignidade das crianças.

  6. Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, TAIPA DE CARVALHO e PINTO DE ALBUQUERQUE que consideram que o poder de correção pode configurar, desde que preenchidos determinados requisitos, uma causa de exclusão de ilicitude de determinadas condutas castigadoras que, porque típicas, deveriam ser tidas como ilícitas.

  7. De entre os quais se podem mencionar os seguintes: (i) Que o agente tenha agido com uma finalidade meramente educativa; (ii) Que o castigo seja aplicado de forma criteriosa e proporcional, devendo ser leve; (iii) A necessidade de moderação na aplicação do castigo, não colocando em causa os direitos e a dignidade da criança.

    I. Devendo-se ainda atentar à situação do caso concreto e respetivas circunstâncias, revelando-se o castigo necessário, adequado, proporcional e razoável.

  8. E, neste conspecto, importa, desde logo, atentar à conduta do assistente que, reiteradamente, contestou as explicações apresentadas pela sua mãe quanto à demora do seu companheiro em chegar para irem jantar, “de modo agressivo” conforme declarações da arguida ao minuto 11:42 da gravação 20191127145944_4263090_2871311.

  9. E na postura desafiadora assumida pelo assistente que provoca a sua mãe (arguida) com diferentes expressões como “Ao menos eu pago as minhas dívidas quando as tenho (…) ao minuto 3:03 da gravação 20191127153652_4263090_2871311 e “cresce” na sua direção, L. Conforme declarações da aqui Arguida “Ele vem direito a mim a crescer a olhar para mim assim. o BB tem mais corpo e altura que eu já não era a primeira vez que ele tinha feito isto (…) quando ele me faz isto eu dou lhe assim uma estalada …” ao minuto 13:10 da gravação 20191127145944_4263090_2871311.

  10. E do próprio assistente que aquando da questão sobre se discute com a sua mãe refere “ tento sempre ganhar a discussão mostrar à mãe que tenho razão ahh mas é tudo oral e nunca passou para o físico excepto a vez que eu fiz peito ou cresci para ela nessa situação de Março…” ao minuto 16:48 da gravação 20191127153652_4263090_2871311.

  11. Bem como da testemunha, irmã do assistente, “eu ouvi-os a discutir (…) ele estava sempre a insistir quando é que chega, quando é que chega, quando é que chega (…)” ao minuto 5:43 da gravação 20191205142409_4263090_2871311.

  12. Referindo ainda, quando questionada sobre se alguma vez viu o seu irmão perante o desacordo a “crescer” para mãe: “eu vi o BB a fazer frente à mãe (…) a mãe dizer alguma coisa para o Ari e o Ari olhar nos olhos da mãe por exemplo para dentro mesmo a dizer que eu não tenho medo não tenho medo (…) mostra que não tem medo do que a mãe vai dizer ou fazer e é capaz de dizer coisas” ao minuto 12:07 da gravação 20191205142409_4263090_2871311.

  13. Conduzindo a uma situação limite e pontual, que culmina numa única bofetada desferida na face do menor de 17 anos, da qual não resultaram danos significantes, Q. Pelo que estamos perante uma ofensa proporcional, moderada e leve, fundamentada numa finalidade meramente educativa, motivada por um sentimento de impotência e de prevenção geral, R. Perante um filho que não respeita a sua mãe, reiteradamente, afrontando-a e com uma compleição física visivelmente superior à da sua mãe (estatura e corpulência) cerca de 1,80m/80kg o assistente e 1,55m/55kg a arguida.

  14. Pelo que a arguida com a sua conduta não pretendeu atingir a saúde e bem- estar do menor, e, consequentemente, não violou o princípio da dignidade da pessoa humana.

  15. Tendo apenas e tão só a intenção de educar o seu filho, que esgotada a vertente do diálogo persiste em desrespeitar a sua mãe.

  16. In casu conforme douta sentença “estamos perante um acto isolado, perpetrado num contexto de discussão e em que o assistente adopta uma postura desafiadora perante a arguida, sua mãe. (…) a agressão perpetrada pela arguida traduziu-se numa única bofetada, não se tendo apurado que da mesma tenham resultado lesões mais gravosas”.

    V. Relevando para a análise a intensidade e gravidade do castigo, o motivo que lhe deu causa, a idade (17 anos) e constituição física do assistente.

  17. Sendo que, o problema manifesta-se quando as situações ocorridas não se enquadram num contexto educativo, mas de violência e agressividade com vista à lesão do corpo ou saúde da criança.

    X. Assumindo, apenas nestes casos (fora do intuito educativo), relevância penal.

  18. Concluindo-se, numa valoração global da conduta da aqui arguida, por uma ofensa jurídico-penalmente irrelevante e, portanto, atípica, destituída de dignidade penal.

  19. Ou caso assim não se entenda, sem conceder, lícito, nos termos do artigo 31.º do Código Penal, por ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude.

    AA. Porquanto, deve o douto acórdão proferido pelo tribunal a quo ser revogado no sentido supra exposto, assim se fazendo justiça.

    BB. Caso contrário, estaremos perante um problema de criminalização da família, designadamente, que se “persiga” processualmente todo o e qualquer caso de castigo corporal que surja.

    TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA:

  20. SER A ARGUIDA ABSOLVIDA DA PRÁTICA DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES, PREVISTO E PUNIDO PELO ART. 143.º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL, B) E, CONSEQUENTEMENTE, DA PENA APLICADA DE 50 (CINQUENTA) DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE €6,00 (SEIS).

    FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

    …”.

    * A Exm.ª Magistrada do MP[4] respondeu ao recurso, a fls. 285/286, concluindo da seguinte forma: “… 1- A decisão recorrida não merece censura.

    2- Devendo ser mantida na integra.

    …”.

    * Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 292, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

    * A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.

    Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, os princípios da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.

    O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto: “… Factos provados Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultou provado que: 1) O ofendido BB, nascido em ………../2002 e CC, nascida em ………..2005 são filhos da arguida AA.

    2) Desde data não concretamente determinada, mas que se situa no ano de 2012, foi fixada no processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, a guarda conjunta dos menores, com residência semanal alternada, passando os mesmos uma semana na residência da progenitora e a outra semana na residência do progenitor.

    3) No dia 10/03/2018, cerca das 20h00m, o menor e a arguida iniciam uma discussão, motivada pelo facto daquele se encontrar desagradado por ter que esperar pelo companheiro da arguida para irem jantar.

    4) No decurso da aludida discussão, após a arguida o mandar para o quarto, o menor...

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