Acórdão nº 1244/19.7PBFAR-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 23 de Junho de 2020

Magistrado ResponsávelBEATRIZ MARQUES BORGES
Data da Resolução23 de Junho de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório 1. Da decisão No inquérito n.º 1244/19.7PBFAR-A do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Faro, Juiz 2 o Meritíssimo Juiz de instrução por despacho datado de 11 de fevereiro de 2020 indeferiu o requerimento do MP para a tomada de declarações para memória futura a (…), nascido em (…).

* 2. Do recurso 2.1. Das conclusões do Ministério Público Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1 - Pelo Ministério Público foi requerida a tomada de declarações para memória futura a (…), nascido a (…), nos termos do disposto no artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e também do disposto no artigo 271.º do Código de Processo Penal, porquanto, sendo o mesmo vítima especialmente vulnerável devia beneficiar de tal medida de protecção, considerando a sua fragilidade, a gravidade dos factos e o grau de risco, calculado em elevado, bem como o facto de o arguido se encontrar preso preventivamente, sendo expectável que o menor, assim que tomar conhecimento de tal facto, se sinta intimidado e ainda mais aterrorizado, o que aumentará exponencialmente caso tenha de depor em audiência de discussão e julgamento. Foi ainda aduzido como argumento o facto de se indiciar que José Serrano, durante o período em que os três residiram em conjunto, vivenciou múltiplas situações de violência dirigidas a sua mãe e sofreu, inevitavelmente, e em decorrência de tais eventos traumáticos, danos emocionais; 2 - Não obstante, o Mmo. JIC indeferiu o requerido (…) 3 - O presente recurso visa a revogação de tal despacho, por várias ordens de razões; 4 - Em primeiro lugar, por se considerar que o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, ao ter aplicado o previsto no artigo 260.º da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, quando deveria ter aplicado o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º do Código de Processo Penal, bem como o disposto nos artigos 2.º e 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro: - Em caso de pessoas vítimas do crime de violência domestica, tem aplicação o regime previsto na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-A e 271.° do Código de Processo Penal e não o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho; - De facto, a Lei 112/2009, de 16 de Setembro instituiu um regime específico para a tomada de declarações para memória futura a vítimas de violência doméstica, regime esse compaginável com o estabelecido na Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro e com o disposto no Código de Processo Penal, mas que não se confunde com o objecto da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, definido no seu artigo 1.º; - A supletividade deste último diploma legal por correcção com aqueles, resulta também do disposto no artigo 20.°, n.º 6 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro; - A tais argumentos, acrescenta-se o elemento literal, nomeadamente o conceito de "vítima especialmente vulnerável "previsto quer na Lei 112/2009, de 16 de Setembro, quer no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, conceito que engloba todas as pessoas que sofrem dano emocional ou moral, ou perda material, directamente causada por acção ou omissão no âmbito de crime de violência doméstica, e que, por conseguinte, não inclui apenas os "ofendidos" da prática do crime"; - De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime, tendo, entre outros: um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida (Bogat, DeJonghe, Levendosky, Davidson e von Eye, 2006; Meltzer, Doos, Vostanis, Ford e Goodman, 2009 Mezey, Bacchus, Bewley e White, 2005; Peltonen, Ellonen, Larsen e Helweg-Larsen, 2010); risco aumentado na saúde física (Bair-Merritt, Blackstone e Feudtner, 2006); risco de abandono escolar e outros desafios educacionais (Byme e Taylor, 2007; Koenen, Moffitt, Caspi, Taylor e Purcell, 2003; Willís et al., 20 I O); risco de envolvimento em comportamentos criminais (R. Gilbert et al., 2009; T. Gilbert, Farrand, & Lankshear, 2012) e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras (Black, Sussman & Unger, 2010; Ehrensaft et al., 2003; Siegel, 2013); são também mais propensos a sofrer e a praticar bullying (Baldry, 2003; Lepistõ, Luukkaala e Paavilainen, 2011) e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007; Turner, Finkelhor & Ormrod, 2010).; - Neste sentido, veja-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República ao Projecto de Lei n." 1183/XIIl/4.0 do Bloco de Esquerda, disponível para consulta em http://app.parlamento . pt/webutils/ docs/ doc.pdf?path=6148523 063446f7 64c3 246 79626d56304c3 34e 706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316 c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e686279396c596a526c59325131 59533 I 6c4e54466b4c5451355a544574595441354e79316d5a6a4e 685932526d4f44466d597a59756 347526d&fich=eb4ecd5a-e5I d-4gel-a097-ff3acdf81fc6.pdf&Inline=true (com último acesso a 7 de Março de 2020), onde se defende que as criança/menor/menores que testemunham violência doméstica são vítimas deste crime de acordo com as citadas disposições legais; - No caso concreto, (…) é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque: conta com 15 anos de idade; assistiu a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica que, nas próprias palavras do Tribunal a quo, a vir a provar-se como cometido, "reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima"; viveu com o denunciado entre os 10 e os seus 14 anos, sendo aquele, durante este concreto e crucial período da vida de José Serrano, uma das figuras adultas de referência; o denunciando, ainda que à ordem de outro inquérito, está preso preventivamente pela existência de fortes indícios da prática do crime de homicídio qualificado, agravado pela reincidência, nos termos dos artigos 75.°, 76.°, 131.°, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal; 5 - Ao não enquadrar a criança/menor no conceito de vítima especialmente vulnerável oferecido pelos artigos 2.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 67.º-A do Código de Processo Penal, o despacho recorrido efectuou uma interpretação de tais normas desconforme aos artigos 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa: - Conjugados os regimes das leis aqui convocadas (112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015, de 4 de Setembro, 93/99, de 14 de Julho) com a Constituição da República Portuguesa, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção de Istambul, as crianças/menores que testemunhem actos de violência doméstica, são vítimas especialmente vulneráveis na acepção das Leis 112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015 de 4 de Setembro e artigo 67.º-A do Código de Processo Penal; - A interpretação do artigo 2.°, alínea b) da Lei n. ° 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal, no sentido que as crianças/menores que assistem a actos de violência doméstica não são vítimas especialmente vulneráveis, é desconforme aos artigos 8.° e 69.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já expressamente se argui; Defende-se a seguinte interpretação de tais normas, conforme à Constituição da República Portuguesa: - As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.° do Código Penal, ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e, portanto, ofendidos da prática do crime, são vítimas especialmente vulneráveis nos termos do artigo 2.°, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a i) e b), e n. ° 3 do Código de Processo Penal; De facto.

- Dispõe o artigo 8.° da Constituição da República Portuguesa, que "1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português; 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.; 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.; 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. ".

- E dispõe o artigo 69.°, no seu n.º 1, que "As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições."; - A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.°, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor; - O mesmo ditam os artigos 26.° e 56.° da Convenção do Conselho da...

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