Acórdão nº 6399/18.5T9CBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 13 de Maio de 2020

Magistrado ResponsávelMARIA JOS
Data da Resolução13 de Maio de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. No âmbito do processo comum singular n.º 6399/18.5T9CBR, do Tribunal Judicial de Coimbra, Coimbra – JL Criminal – Juiz 1, mediante acusação pública, foi o arguido A.

, melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

  1. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 04.10.2019, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]: 1. Condenar o arguido A. pela prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão efetiva.

    […].

  2. Inconformado recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões: i. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos, que condenou o recorrente pela prática do crime de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº 1 e 2 do Código Penal ii.

    O Tribunal a quo cometeu um erro na apreciação e valoração de determinada prova e julgou incorretamente determinados factos, porquanto, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impunha uma decisão diversa da verificada.

    iii. A sentença recorrida enferma de manifesto erro na apreciação e valoração da prova constante dos autos, que impunha uma decisão diversa no sentido da absolvição do arguido, aqui recorrente.

    iv. No concerne ao enquadramento jurídico-penal o ora recorrente veio acusado e condenado, na douta sentença de que se recorre, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n. º1 e 2 do Código Penal.

    1. Refere o nº 1 do referido 36º que: “1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”.

      vi. Entendemos que face a esta previsão o legislador ordinário pretendeu que o bem jurídico a tutelar fosse o da realização da justiça, daí se encontrar na sistemática do Código Penal, no capítulo dos “Crimes Contra a Realização da Justiça” e para isso impõe, sobre a testemunha, um dever de colaboração no processo judicial ou análogos em que é interveniente.

      vii. No caso do recorrente, e atento o provado em julgamento, a recusa deste em depor visou defender um bem maior, isto é, a vida do aqui Recorrente.

      viii. O universo dos Estabelecimentos Prisionais é pautado por regras, posturas e realidades bastante peculiares, que por diversas vezes se afastam dos princípios basilares do nosso Estado de Direito, onde impera a Lei do mais forte e princípios, que hoje são repugnados pelo nosso ordenamento jurídico mas que em tempos desregrados imperaram, como a tão antiga Lei de Talião – a retaliação em medidas proporcionais, no vulgo conhecida como olho por olho dente por dente.

      ix. É neste complexo contexto, e que aos olhos de um jurista se afigura desvirtuado, que o Recorrente passou e passará parte da sua vida adulta, onde sobre a sua cabeça paira a Espada de Dâmocles, não remetendo para o poder, mas antes à constante insegurança vivida no mundo Prisional, onde existe a dita espada.

    2. Esta realidade molda e condiciona todo o comportamento a ter pelos reclusos e com os reclusos, xi. A simples ideia de que um recluso pode ou veio a denunciar um companheiro é motivo para atentar contra a vida do denunciante, porquanto a vida de um rato não tem qualquer valor no meio prisional.

      xii. O Recorrente encontra-se inserido neste universo peculiar e também ele tem que se reger pelas regras aí ditadas e aplicadas, xiii. O recorrente sabe perfeitamente que existem limites intransponíveis e que a não atuação de acordo com o preestabelecido determina, irremediavelmente, problemas com os seus pares.

      xiv. Perante duas realidades tão disformes entre si, de um lado o dever do testemunho, do outro a problemática da vida de um delator dentro de uma prisão, não será difícil de compreender a relutância, do aqui Recorrente, em falar no dia no dia 14 de Maio de 2018, xv. Perante uma situação com a particularidade como é a nossa, qualquer pessoa que preze a sua vida e que tenha amor-próprio faria o mesmo, isto é, recusaria delatar sobre o que fosse relativamente a um acontecimento verificado no interior de uma EP, sabendo que ao fazê-lo estaria a pôr a sua própria vida em perigo.

      xvi. O caso do recorrente apresenta dois pesos bem diferentes na balança da justiça e é esse a analise que terá que ser aqui feita, xvii. Não pode, em sistema algum, o bem jurídico da Realização da Justiça ter o mesmo peso que o bem jurídico da vida – sem o qual a própria ideia de justiça é inexistente, inócua e obsoleta.

      xviii. O crime de que o Recorrente foi acusado tem, no seu número 2 do artigo 360 do código penal, uma válvula de segurança que acrescenta alguma elasticidade e abertura ao formalismo positivado pelo legislador.

      xix. Admitindo esta disposição legal a existência da tão digna Justa Causa – a contrário, nos seguintes termos: “2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução”.

      xx. A existência de «justa causa» para a recusa de depor é causa de «exclusão da ilicitude» (art. 31 do Cod. Penal).

      xxi. A justa causa para depor faz parte dos «tipos justificadores».

      xxii. Ora, nos termos do nº 1 daquele art. 31 do Cod. Penal, “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.

      xxiii. A expressão «sem justa causa» usada pelo legislador é redundante, porque nenhum comportamento é criminalmente punido quando o agente atua com «justa causa».

      xiv. São exemplos de «justa causa» para a recusa de depoimento as prerrogativas consignadas na lei processual para alguns familiares do arguido (art. 134 do CPP), a existência de segredo (art. 135 do CPP) ou a alegação pela testemunha de que das respostas resulta a sua responsabilização penal (art. 132 nº 2 do CPP).

      xxv. Não foi intenção do legislador – conclusão que se retira da analise da jurisprudência Nacional dos Tribunais Superiores bem como o entendimento da doutrina maioritária – tornar a justa causa um tipo justificador taxativo, inerte e sem qualquer abertura à realidade jurídica que constantemente se manifesta na mutabilidade dela mesma, xxvi. A situação do recorrente não pode nem deve ser uma situação alheia a esta mutabilidade e adaptação do próprio sistema jurídico, xxvii. A situação do recorrente submetida a...

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