Acórdão nº 5239/16.4T8GMR-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 23 de Abril de 2020

Magistrado ResponsávelJOS
Data da Resolução23 de Abril de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

RELATÓRIO Recorrente: X& Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, S.A.

Recorrida: Y – Papel Comercial ... e RF.

Y – Papel Comercial ... e RF, fundo de representação de créditos, do qual P. – SGFTC, S.A., com sede na Rua …, Lisboa, instaurou incidente de habilitação, requerendo que seja habilitada na qualidade de cessionário dos créditos que identifica, a fim de prosseguir na causa na posição jurídico-processual antes ocupada pela cedente.

Para tanto alega, em síntese, que a Autora nos autos principais celebrou com a requerente um contrato de adesão mediante o qual lhe transmitiu o papel comercial emitido pela RF Investments, S.A., bem como os créditos e direitos associados a esses títulos; Como consequência, na sequência desse contrato é a requerente a atual titular de todos os créditos, atuais, futuros, contingentes, litigiosos ou de qualquer outra natureza que aquela Autora, cedente, detenha ou possa vir a deter contra os Réus nos autos principais, decorrentes do papel comercial emitido pelo ... International, S.A, e pela RF Investments, S.A..

Apenas a requerida X& Associados - Sociedade de Revisores Oficiais de Constas, S.A. contestou opondo-se à habilitação requerida, invocando para tanto: - que o alegado crédito da cedente (Autora) sobre aquela não se encontra abrangido pela Lei n.º 59/2017, de 11/08, dado não reunir as características enunciadas no art. 2º dessa Lei, uma vez que a cedente funda esse crédito nas alegadas más práticas que imputa à X no desempenho das suas funções de auditora e ROC; - a inconstitucionalidade material do art. 10º da Lei n.º 69/2017, por violação do princípio da proteção da confiança, ao substituir a Autora (cedente) pela requerente (cessionária), enquanto adquirente do putativo crédito contra a X, levando a que a cessionária beneficie de uma posição mais vantajosa que a própria Autora (cedente), quando essa posição vantajosa não existia, sequer era equacionável ao tempo da constituição do pretenso crédito ou à data da instauração da ação declarativa instaurada pela cedente, ao permitir à cessionária beneficiar de um prazo prescricional mais alargado do que beneficiaria a própria cedente, isto quando a oponente, na contestação que apresentou nos autos principais, invocou precisamente a exceção da prescrição do pedido indemnizatório que a aí Autora (cedente) vem exercer contra a mesma nessa ação; - o agravamento dos meios de defesa que pode opor à requerente (cessionária), alegando que o art. 59º, n.º 2 da Lei n.º 69/2017, impede-a de invocar contra a última os meios de defesa que seriam oponíveis à Autora (cedente) e que proviessem de factos anteriores ao conhecimento do contrato de cessão, contanto que posteriores ao momento em que essa cessão se terá tornado eficaz entre cedente e cessionária.

A requerente respondeu concluindo pela improcedência dos fundamentos de defesa apresentados pela contestante.

Proferiu-se sentença julgando totalmente procedente o incidente e declarando habilitada a requerente Y – Papel Comercial ... e RF como cessionária dos créditos de índole patrimonial peticionados pela Autora nos autos principais, constando essa sentença da seguinte parte dispositiva: “Por tudo o exposto, julgo totalmente procedente o presente incidente e, em consequência, habilito o Y – Papel Comercial ... e RF como cessionário dos créditos de índole patrimonial peticionados pela autora nos autos principais.

Custas a cargo da X & Associados, Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, S.A. – art. 527º do CPC”.

Inconformada com o assim decidido, a contestante X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Constas, S.A., interpôs o presente recurso de apelação, em que apresenta as seguintes conclusões:

  1. O incidente de habilitação previsto no artigo 356.º do CPC é facultativo e visa concretizar a substituição na lide de uma das partes por motivo da transmissão ou cessão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, na pendência do processo.

  2. Caso seja suscitado, é notificada a parte contrária para contestar, podendo, nesse caso, impugnar a validade da transmissão e/ou alegar que a mesma foi feita para agravar a sua posição no processo, muito embora sobre o juiz impenda o poder-dever de verificar se a transmissão ou cessão é válida, mesmo na falta de oposição dos requeridos.

  3. Os fundamentos invocados pela X na contestação à habilitação para obstar à substituição da Autora pelo Fundo são os expressamente admitidos no artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC: invalidade da transmissão do alegado crédito da Autora sobre a X e agravamento da respetiva posição processual caso o Fundo fosse admitido a substituir a Autora.

  4. A Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, visou apenas abranger os créditos emergentes ou relacionados com vendas culposas de produtos financeiros não adequadas às necessidades dos clientes, pelo que somente os créditos indemnizatórios daí emergentes podem ser objeto de cessão ao Fundo, não tendo sido propósito da lei (nem do Regulamento de Gestão do Fundo ou do Modelo de Solução proposto aos chamados “lesados do BANCO ...”) abranger todas e quaisquer pretensões indemnizatórias que os clientes do BANCO ... pudessem invocar, designadamente contra a X enquanto ROC e auditor do BANCO ... ou de qualquer outra entidade do grupo ....

  5. No que à X respeita, os créditos que o Fundo diz ter adquirido à Autora não são créditos que resultem ou estejam relacionados com a aquisição ou detenção de papel comercial da RF pela Autora, estando antes relacionados com alegadas más práticas da X enquanto auditora e ROC do BANCO ... — o que afasta a aplicação das normas da Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, e impede a aquisição de tais supostos créditos pelo Fundo.

  6. Não são alegados na petição inicial (nem no requerimento de habilitação do Fundo) quaisquer concretos factos que relacionem a X com a aquisição ou detenção de papel comercial da RF pela Autora.

  7. Na realidade, nem sequer se vislumbra de que forma é que os créditos que a Autora pudesse deter sobre a X em virtude da sua suposta falta de diligência na emissão de uma certificação legal de contas do BANCO ... posterior ao investimento realizado em papel comercial da RF, poderiam ser considerados créditos “emergentes”, “decorrentes” ou “relacionados” com a subscrição de papel comercial pela Autora.

  8. Uma vez que a aquisição, pelo Fundo, do pretenso crédito da Autora sobre a X não é autorizada pela Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, nem pelo Regulamento de Gestão do Fundo, a sua aquisição pelo Fundo é nula e ineficaz relativamente à X, pelo que deve ser indeferida na totalidade a pretendida habilitação do Fundo.

  9. A rejeição do pedido de habilitação justifica-se também pelo facto de a substituição processual requerida prejudicar a posição processual da X e dos demais Réus no processo.

  10. Na situação dos autos, não é exigível que fique demonstrada a existência de um propósito malicioso na transmissão do alegado crédito para que seja indeferido o pedido de substituição da Autora pelo Fundo.

  11. Isto porque o que está em causa não é apurar se se justifica proteger a X contra a substituição da Autora por um contendor mais forte ou aguerrido; do que se trata é, antes, de a proteger contra uma substituição do cedente pelo cessionário que em si mesma, objetivamente, é capaz de a prejudicar por força do regime legal mais favorável de que o cessionário pode beneficiar.

  12. Em qualquer caso, sempre se diga que o facto de a constituição do Fundo e a transmissão de créditos se inserir numa solução global tendente à redução das perdas sofridas por investidores não qualificados em papel comercial não afasta o propósito de dificultar a tarefa de defesa dos Réus.

  13. Pelo contrário, decorre de algumas passagens do “Modelo de Solução” que o objetivo da transmissão foi precisamente o de tornar mais eficiente a cobrança dos alegados créditos, através da substituição dos vários Autores por uma entidade profissional capaz de promover uma recuperação maior e mais eficaz desses mesmos pretensos créditos — e, consequentemente, de tornar mais difícil a posição dos Réus nos processos judiciais em curso (cfr. capítulo IV, §34, al. vi.).

  14. A Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, contém normas (tais como as contidas no artigo 10.º, quanto ao prazo de prescrição, e no artigo 59.º, n.º 2, quanto aos meios de defesa oponíveis ao cessionário) que conduzem a que o Fundo, caso se substitua à Autora como adquirente dos alegados créditos contra a X, beneficie de uma posição mais vantajosa do que a da Autora.

  15. Em concreto, a norma do artigo 10.º da Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, pretende estabelecer um regime especial de que beneficiaria o adquirente dos créditos (mas não assim a Autora, parte originária no processo) em matéria de contagem do prazo de prescrição.

  16. Uma leitura desta norma no sentido de o adquirente do (alegado) crédito poder beneficiar de um prazo prescricional mais alargado do que o que era conferido ao cedente, a ponto de um crédito já prescrito poder ser validamente exercido, é clamorosamente inconstitucional, por violação, entre outros, do princípio da proteção da confiança nas expectativas legítimas, designadamente previsto no artigo 2.º da Constituição (o que se deixou arguido, para todos os efeitos legais, na contestação à habilitação).

  17. Sem prejuízo disso, o facto de o Fundo, se se substituísse à Autora, poder fazer valer na ação um alegado direito aparentemente sujeito a um prazo prescricional cujo termo inicial é determinado em termos que lhe são muito mais favoráveis do que aqueles que resultam do regime geral constitui uma vantagem significativa para o Fundo e um prejuízo para a posição processual da X.

  18. Outra norma da Lei n.º 69/2017, de 11 de Agosto, que concede benefícios especiais ao adquirente dos alegados créditos, com prejuízo para a posição processual da X, é a do artigo 59.º, n.º 2, que limita a oponibilidade ao adquirente de meios de defesa que...

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