Acórdão nº 105/17.9GAMGD.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 26 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelAUSENDA GON
Data da Resolução26 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório 1.1. Por decisão proferida e depositada em 14-10-2019 no identificado processo, o arguido M. P.

foi julgado e absolvido da imputação de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, als. b) e c), e ns. 2, 4 e 5, do C. Penal e ainda do pedido de indemnização cível formulado pela demandante S. G., por se ter por verificada a excepção de caso julgado material, com a seguinte fundamentação: «(…) Sobre a questão em dilucidação, numa situação idêntica à dos autos, podemos ler no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2019 (processo 76/17.1GDCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt), o qual seguiremos de perto, o seguinte: A excepção de caso julgado materializa o disposto no artigo 29.º, n.º 5 da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).

Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.

Caso julgado em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).

Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída.

As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas: a. Para que proceda a excepção de caso julgado requer-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória.

  1. A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado.

  2. Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado do ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.

Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".

A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09-10-2017 (processo n.º 83/14.6GAMCD.G1): “Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de trato sucessivo num só crime.” Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.

Um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.

Para a determinação de identidade de facto é essencial considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsunção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez.

Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em termos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem.

Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal - cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 13-04-2011, acessível in www.dgsi.pt.

Com relevância em sede de crime de violência doméstica, concorda-se com o douto Acórdão da Relação do Porto de 28-10-2015 acessível in www,dgsi.pt, segundo o qual o principio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.

Ademais, sendo certo que o crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vitima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o principio ne bis in idem.

Prossegue o Acórdão, referindo o seguinte: O conceito ou natureza deste princípio mostra-se analisado por Gomes Canotilho e Vital Moreira In Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2007, pp. 497 e 498, como comportando “duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.

A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídicopenais pela prática do «mesmo crime».” A lei constitucional é clara ao pretender impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída. Como afirma Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226, “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto”.

Importa, assim, definir e delimitar o que se deve entender ou considerar por “o mesmo substrato material”, “o mesmo facto” ou, segundo o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, “mesmo crime”, para, por esta via, evitar o designado duplo julgamento e consequente violação do caso julgado material.

Ora, a jurisprudência tem vindo a entender que a expressão “mesmo crime”, a consagrada pelo legislador “não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” - Ac Rel Coimbra de 28-05-2008, Rel. Alberto Mira.

Segundo Frederico Isasca, ob, cit., pág. 242 e 229 «… o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a...

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