Acórdão nº 1658/19.2T8LRA-B.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelMARIA JO
Data da Resolução18 de Dezembro de 2019
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO M..., solteira, veio apresentar-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a concessão deste benefício e pedindo que lhe seja fixado um rendimento disponível no valor equivalente a dois salários mínimos nacionais, com base no seguinte condicionalismo socioeconómico: por força de um contrato de trabalho celebrado por seis meses, aufere o vencimento mensal ilíquido de 600,00€, o qual, acrescido do valor do subsídio de alimentação, ascende a um total de 624,00€; as despesas ordinárias do seu agregado familiar rondam os 700,00€.

Declarada a insolvência da Requerente, o Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.

Nenhum dos credores se manifestou relativamente a tal pretensão da insolvente.

O Juiz a quo proferiu despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando que o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir em quantia superior a 700,00€ se considera concedido ao fiduciário.

Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: ...

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. Se é de alterar a decisão recorrida que fixou o rendimento indisponível no montante de 700,00€, por se afigurar insuficiente.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação: 1) - A requerente nasceu no dia 13.03.1975 e é solteira; 2) - Tem uma filha, ..., nascida a 29.11.2014; 3) - Residem ambas em casa dos pais da requerente, os quais não lhe cobram qualquer renda, auxiliando-a com as despesas de alimentação, vestuário e saúde; 4) - Mostra-se inscrita no IEFP, IP, tendo outorgado, no dia 22.02.2019, contrato de trabalho a termo certo, por um período de seis meses, renovável por idêntico ou diverso período, com a empresa ..., para o exercício das funções de aprendiz de fabrico de caixas de madeira; 5) - Aufere, a título de ordenado base, acrescido do valor do subsídio de alimentação, a quantia mensal líquida de €624,00; 6)- Não tem qualquer outra fonte de rendimentos; 7) - Não é titular de quaisquer bens móveis ou imóveis; 8) – A requerente alega que as despesas normais do seu quotidiano ascendem a €500,00, a que acrescem as despesas com roupa e saúde do agregado familiar no valor de €200,00.

9) – A requerente habita em casa dos pais, entregando-lhes todos os meses a quantia de €150,00 para os ajudar a fazer face às despesas.

10) - Os créditos reconhecidos ascendem a €24.073,31.

O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objeto de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã[1], traduzindo uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica.

Os diferentes regimes de tratamento do sobre-endividamento da pessoa singular podem agrupar-se em duas categorias: i) o modelo (puro) do fresh start e ii) o modelo derivado do earned start ou da reabilitação.

“O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[2]”.

Temos assim alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de insolvência[3].

O art. 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[4] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[5]”.

Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[6] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das...

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