Acórdão nº 29/18.2PCFAR-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Março de 2019

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução12 de Março de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos autos em referência, deduzida acusação pelo Ministério Público, para julgamento em processo abreviado de AA, imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, veio a mesma a ser notificada, bem como o seu defensor nomeado, de que, além do mais, dispunha do prazo de vinte dias para, querendo, requerer a instrução.

Não tendo a instrução sido admitida, a arguida invocou irregularidade por ausência de pronúncia acerca de questões que suscitou.

No Juízo de Instrução Criminal de Faro, proferiu-se, então, o seguinte despacho: «Veio a arguida invocar a irregularidade do despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução, alegando em síntese que o mesmo não apreciou as questões suscitadas no aludido requerimento como pressuposto para a admissão do mesmo, não obstante a forma de processo abreviada.

Assiste razão à arguida.

De facto, previamente à rejeição da abertura de instrução, deveriam ter sido apreciados os respectivos argumentos, já que nos mesmos se suscita a inconstitucionalidade de diversas normas do Cód. Proc. Penal.

Assim, a decisão em causa padece não de irregularidade, mas de nulidade por omissão de pronúncia (cfr. art.º 379.º do Cód. Proc. Penal, considerando-se tal preceito legal aplicável ao despacho em causa), motivo pelo qual urge desde já sanar tal vício processual.

Deste modo, infra será cabalmente apreciada a pretensão da arguida de ver admitido o seu requerimento de abertura de instrução.

* Em primeiro lugar, fundamenta a arguida a admissibilidade de requerer a abertura de instrução atento o facto de, na notificação que lhe foi remetida (em língua portuguesa, constante de fls. 9 e na língua alemã a fls. 25), ter a mesma sido notificada de tal possibilidade.

Considera, por conseguinte, a arguida, que lhe foi criada uma legítima expectativa de poder contar com tal fase processual, sendo que a não admissão da instrução violaria, neste momento, o princípio da protecção da confiança consagrado no art.º 2.º da nossa Lei Fundamental.

Salvo o devido respeito por diversa opinião, discorda-se de tal entendimento.

O princípio da protecção da confiança, desde logo pela sua consagração constitucional, protege os mais elementares deveres de respeito que o Estado, como ente Institucional, deve deter não só perante os seus cidadãos, como igualmente face a cidadãos estrangeiros que se encontrem no país.

Assim, estabelece o art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.

O princípio da protecção da confiança é, por conseguinte, uma consagração do Estado de Direito Democrático.

Para que haja violação do aludido princípio, é necessário que a recusa da legítima expectativa seja de tal modo intensa, que coloque em causa, no caso em concreto, os princípios fundamentais de consagração do Estado Português como de Direito Democrático.

Ou seja, apenas os casos mais gravosos de violação das expectativas de determinada pessoa poderão levar à violação do princípio da confiança. Casos haverá, porém, em que tal frustração não afronte a própria estrutura axiológica-normativa do Estado de tal modo que coloque em causa o princípio constitucional em análise.

Como corolário do princípio da protecção da confiança, o art.º 157.º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, aplicável “ex vi” do art.º 4.º do Cód. Proc. Penal, prevê precisamente que “os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.

Ora, no caso em análise, é manifesto que o acto da secretaria foi eivado de lapso já que, conforme se referiu no despacho declarado nulo, o processo abreviado não admite a fase de instrução.

Todavia, a efectiva ocorrência de tal lapso não invalida a inadmissibilidade legal de fase de instrução, e muito menos coloca em causa o aludido princípio da protecção da confiança.

É que o lapso da secretaria, por si só, não origina a que a visada pela respectiva notificação seja, ainda que involuntariamente, compelida a praticar ou a não praticar um acto que legalmente lhe assistia – o que sucede, por exemplo, nos casos em que a secretaria concede um prazo superior ao legalmente previsto e, baseado nesse prazo, a parte pratica o acto respectivo, sendo posteriormente o mesmo indeferido por, afinal, o prazo legal ter sido excedido.

No caso em apreço, e previamente à própria decisão da secretaria, o art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, não prevê a existência de fase de instrução nos processos abreviados. Assim, a referência, pela secretaria, à possibilidade de requerer a abertura de instrução não causa, face à lei vigente, qualquer prejuízo à arguida, já que a mesma, afinal, não a podia sequer requerer.

Por outro lado, sempre se considera manifestamente desproporcional que a existência de um mero erro da secretaria pudesse levar à possibilidade de uma fase processual que não é admitida pela lei. Assim, atento o princípio da proporcionalidade e da ponderação de interesses, considera-se igualmente que, ainda que se pudesse considerar violado o princípio da confiança – que, como se disse, não se admite – tal princípio esbarraria, desde logo, com o princípio da igualdade, ao permitir uma única e concreta excepção à inadmissibilidade da fase de instrução em processo abreviado.

Refira-se, para além do mais, que a arguida tem mandatário nomeado – que, naturalmente, detém pleno conhecimento das disposições legais que regem o Processo Penal – e que o mesmo foi notificado do despacho que deduziu acusação, sabendo necessariamente de antemão que a referência à fase de instrução, referida na notificação em apreço, resultou de lapso manifesto e podendo, em consequência, advertir a arguida de tal situação.

Relativamente à segunda causa de inconstitucionalidade invocada pela arguida – a violação das suas garantias de defesa, por impossibilidade de requerer a suspensão provisória do processo – vem sendo jurisprudencialmente entendido, de forma constante, que o requerimento de tal instituto processual, no processo abreviado, apenas pode ser realizado em fase de inquérito.

Assim, conforme se refere no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 6 de Novembro de 2013, proc. n.º 30/13.2GTBRG.P1, disponível in www.dgsi.pt: “Se o agente do crime apenas adquire a qualidade de arguido com a acusação, não tem legitimidade para requerer a suspensão provisória do processo antes dessa fase, sendo-lhe imputável a falta de diligência bastante para antes da possível dedução da dita acusação requerer que fosse constituído arguido (ao abrigo do art. 59º, nº 2, do CPP), para então poder requerer a suspensão provisória do processo. Não o tendo feito, não pode “queixar-se” de terem sido violados direitos ou garantias de defesa que então (antes de deduzida a acusação) não tinha.” Conclui-se, por conseguinte, que caso a arguida pretendesse requerer a suspensão provisória, deveria, ainda em fase de inquérito, ter solicitado a sua constituição como arguida e apresentado tal requerimento. E tal actuação assume particular interesse quando não é admitida a fase de instrução, como sucede na forma abreviada do processo.

Porém, o que se conclui é que a inadmissibilidade de fase instrutória, embora limite o momento em que pode ser requerida a suspensão provisória, não retira à arguida tal possibilidade. Deste modo, igualmente não se vislumbra qualquer violação dos direitos de defesa do arguido, consagrado nos art.ºs 2.º, 20.º e 32.º da Lei Fundamental.

Poder-se-á argumentar, conforme a arguida refere, que não lhe foi nomeado qualquer intérprete ou constituído mandatário, pelo que – conclui-se – não lhe poderia ser imputada a ausência oportuna do recurso àquele mecanismo processual.

Todavia, a inexistência de intérprete ou de mandatário em actos que dizem respeito a pessoa estrangeira e que não compreenda a língua portuguesa suscita uma questão que é prévia à admissibilidade ou inadmissibilidade da fase de instrução, e que se prende com a eventual nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, alínea c), do Cód. Proc. Penal, que foi já invocada pela arguida.

Deste modo, não existe qualquer inconstitucionalidade, quer geral, quer no âmbito do caso em apreço, na aplicação do art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, motivo pelo qual não poderá ser admitida a requerida abertura de instrução.

Assim, nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, “O requerimento [de abertura de instrução] só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Ora, ao abrigo do disposto no art.º 286.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, “Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais”.

Deste modo, uma vez que não é admitida a fase de instrução no processo abreviado, vai desde já rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida.

Em consequência, devolvam-se os autos para apreciação das diversas nulidades suscitadas pela arguida, assim como pela manutenção da forma abreviada ou remessa para outra forma que lhe caiba.

Notifique.».

Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões: A. Recorrente é estudante alemã, residente na Alemanha e não tem qualquer conhecimento da língua portuguesa.

  1. Na data dos factos, a Recorrente encontrava-se de regresso ao seu país, depois de uma semana de férias, quando foi abordada na zona de controlo de bagagem, por deter um spray pimenta (de aquisição livre no seu país) que lhe foi retirado, não tendo esta sido constituída arguida, desconhecendo que contra si se iniciaria um processo penal...

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