Acórdão nº 207/18.4YUSTR.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 14 de Março de 2019

Magistrado ResponsávelFERNANDO ESTRELA
Data da Resolução14 de Março de 2019
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam na 9º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. No proc.° n.° 207/18.4YUSTR, do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, 1.° Juízo, por sentença de 26 de setembro de 2018, foi julgado procedente o recurso de impugnação judicial e absolvido o Recorrente AA…da contra-ordenação p. e p. pelo art. 5.° n.° 1 al. d) do Decreto-Lei n.° 254/2003 de 18/10, com a redacção introduzida pelo art. 18.° do Decreto-Lei n.° 208/2004 de 19/08, conjugado com o art. 9.° n.° 4 al. a) do Decreto-Lei n.° 10/2004 de 09/01, imputada pela Autoridade Nacional da Aviação Civil.

II — Inconformado, o Ministério Publico na 1.ª Instância, interpôs recurso formulando as seguintes conclusões: 1. O ilícito previsto na al. d) do n.° 1 do art. 5.° do Decreto-Lei n.° 254/2003 de 18/10 (utilização de telemóvel a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, quando tal seja proibido) é de perigo abstracto, pelo que o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. Neste tipo de ilícitos são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto.

  1. Ao considerar que o referido ilícito é de perigo abstracto-concreto, ou- seja, que é necessária a demonstração de que a conduta proibida é apta a perturbar o bom funcionamento dos sistemas e do equipamento do avião, o Tribunal a quo efectuou uma incorrecta interpretação e aplicação do Direito.

  2. Nas infracções de perigo abstracto-concreto (sejam elas penais ou contra-ordenacionais), o legislador recorre a expressões como "de forma adequada a" ou "por forma adequada a" ou "adequado a" ou "que sejam idóneas" ou "seja suscetível de" ou "que sejam susceptíveis" ou outras similares. Tal não sucede no ilícito em causa.

  3. Caso o legislador pretendesse que o ilícito previsto pelo art. 5.° n.° 1 al. d) do Decreto-Lei n.° 254/2003 fosse de perigo abstracto-concreto ou de aptidão, teria dado diferente redacção ao preceito.

  4. O legislador soube exprimir o seu pensamento em ternos adequados, e, consagrou a solução mais acertada para a situação.

  5. A interpretar-se o preceito como o fez o Tribunal a quo, tal implicaria que, em todos os voos, a tripulação tivesse de averiguar quais as marcas, modelos, funcionalidades e características técnicas de todos os telemóveis transportados pelos passageiros, conhecesse as características técnicas da aeronave utilizada e fizesse um juízo técnico sobre a susceptibilidade ou insusceptibilidade de cada um dos telemóveis interferir com os sistemas da aeronave... Salvo o devido respeito, tal é totalmente desrazoável.

  6. O legislador confiou que os operadores dos voos só efectuariam a comunicação de proibição de utilização de telemóvel ou de qualquer outro mecanismo electrónico a bordo de uma aeronave quando existisse fundamento para tal. Pois que motivo teriam as companhias aéreas para estabelecerem proibições de utilização (total ou parcial) de mecanismos electrónicos sem fundamento? 8. Se uma determinada companhia aérea instrui a tripulação de uma concreta aeronave no sentido de que deve ser efectuada uma comunicação de proibição de utilização de telemóvel, só é exigível que a tripulação faça tal comunicação aos passageiros e que, em caso de não acatamento da proibição, interpele o(s) passageiro(s) instando-os ao cumprimento. Por seu turno, os passageiros —independentemente da sua opinião pessoal e/ou dos seus alegados conhecimentos técnicos acerca dos seus telemóveis e da aeronave em que se façam transportar — têm de respeitar escrupulosamente os termos da proibição.

  7. Ao considerar-se que se está perante uma infracção de perigo abstracto: 1) O princípio do primado do Direito da União Europeia não é colocado em crise, pois que a proibição de utilização de mecanismos electrónicos tem implícita um juízo de ponderação prévio pelo operador do voo; o Direito europeu não exige que o referido juízo de ponderação seja efectuado voo a voo e caso a caso, ou seja, que tenha por referência os concretos telemóveis transportados pelos passageiros de um determinado voo.

    2) O princípio da proporcionalidade previsto no art. 18.° da Constituição não é violado, pois que se visa a protecção de um bem jurídico de grande importância: a segurança aeronáutica, e, que antecipa a tutela de bens individuais fundamentais como a vida, a integridade física e o património.

  8. Contudo, ainda que se estivesse perante um ilícito de perigo abstracto-concreto ou de aptidão, sempre o Tribunal a quo teria de condenar o arguido, pois que resulta do facto provado no ponto 5. d) da sentença que: "De acordo com as instruções do fabricante Fokker, Service Letter Fokker 70/100, com data de revisão 4 de novembro de 2002, os telemóveis e outros equipamentos de transmissão não podem ser utilizados e têm de ser desligados desde o fecho de portas até que as mesmas sejam abertas para o desembarque" (os sublinhados e os negritos são da signatária).

  9. Ora, ao contrário do sustentado na sentença recorrida, tais instruções de quem concebeu e construiu a aeronave em que ocorreram os factos são absolutamente suficientes para se concluir que a conduta do arguido — utilização do telemóvel para ouvir música — era idónea para perturbar o bom funcionamento dos sistemas e do equipamento da aeronave. Ressalvado o devido respeito, considera-se temerário afastar o valor e o peso das instruções do fabricante da aeronave com base no "facto público e notório — e por isso, não carecido de prova — que os telemóveis evoluíram muito" desde a data em que foram emitidas tais instruções (no ano de 2002) — vd. ponto 30 da sentença.

  10. Como se pode minimizar a importância das instruções do fabricante, sem que haja qualquer prova pericial em sentido diverso? Sinceramente, espera-se que as companhias aéreas não sejam tentadas a ignorar as instruções dos fabricantes das aeronaves que adquirem e usam para efectuar voos comerciais com base no alegado "facto público e notório — e por isso, não carecido de prova — que os telemóveis evoluíram muito". Julga-se que não o farão, mais não seja para, no caso de algum incidente/acidente aéreo, não se verem confrontadas com uma justificada recusa das companhias seguradoras em pagarem danos e prejuízos originados pela não observância das instruções dos fabricantes.

  11. A sentença recorrida padece de contradição insanável da fundamentação.

    Em face da factualidade dada como provada nas alíneas a) a h) do ponto 5, é inequívoca a existência de "factos materiais e objectivos" que, segundo as regras da experiência comum e da normalidade, provam os factos consubstanciadores de uma actuação dolosa, na modalidade de dolo directo, e, a consciência da ilicitude.

  12. Atentos os termos do aviso comunicado pela tripulação ["Verifique, por favor, se o seu telemóvel está desligado, não podia o arguido deixar de perceber algo tão singelamente simples: desligar o telemóvel é desligá-lo, e, não apenas bloquear algumas das suas funções. E, apesar de ter percebido o que era claro, o arguido — fiando-se nos seus alegados conhecimentos técnicos - quis ceder a um capricho seu: ouvir música a partir do seu telemóvel, só o desligando depois de directamente interpelado.

  13. E, considerando ainda os termos do mesmo aviso, o arguido não podia deixar de saber que a sua conduta era proibida.

  14. Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo em não manter a condenação e a sanção aplicadas pela ANAC.

    Nesta conformidade, deverão Vas. Exas. substituir a decisão recorrida por outra que declare que o ilícito em causa é de perigo abstracto, que dê como provado o constante do ponto 6 da sentença, e, que mantenha a condenação e a sanção (coima fixada no limite mínimo legal) aplicadas pela ANAC.

    Assim, Vas. Exas. Farão JUSTIÇA! IV — Transcreve a decisão recorrida Relatório 1.

    AA…, (doravante "AA…", "Recorrente" ou "Arguido") residente no G…, veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL (doravante "ANAC") no processo de contraordenação n.° 2015/091, que o condenou, como autor material, sob a forma consumada e com dolo direto, pela prática de uma contraordenação prevista pelo art.° 5°, n.° 1, alínea d) do Decreto-Lei n.° 254/2003, de 18 de outubro, com a redação dada pelo art.° 18° do Decreto-Lei n° 208/2004, de 19 de agosto e punível nos termos do art.° 9°, n.° 4, alínea a) do Decreto-Lei n.° 10/2004, de 9 de janeiro, na coima no montante de € 2.000,00 (dois mil euros), por ter utilizado o telemóvel num voo realizado no dia 26 de junho de 2013, quando tal era proibido.

  15. Os fundamentos do recurso são, no essencial, os seguintes: o Arguido não praticou a infração, porquanto a comunicação feita aos passageiros no início do voo em causa não estabelecia qualquer proibição de utilização de meios eletrónicos de reprodução de música a bordo, a função "telemóvel" do Recorrente esteve sempre desligada, encontrando-se o equipamento em "modo voo" e o teor equívoco e genérico da comunicação feita pela tripulação no início do voo não era de molde a que o Recorrente interpretasse tal mensagem no sentido defendido pela ANAC; subsidiariamente, a conduta do Recorrente não pode ser qualificada a título de dolo direto, dado que nunca foi intenção deste violar uma ordem de proibição da tripulação, pelo que, a haver alguma conduta punível como contraordenação a mesma teria que ser qualificada como negligente, dado que o Recorrente jamais configurou que estivesse a violar alguma norma legal ao ouvir música no seu smartphone, e muito menos se conformou com a ilegalidade e quis consciente e intencionalmente praticá-la.

  16. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades legais, não existindo qualquer questão prévia, nulidade ou exceção que obste ao conhecimento do mérito da causa.

  17. Quanto à intensidade e âmbito dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, o teor da impugnação judicial obriga: (i) a uma reapreciação total e plena dos...

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