Acórdão nº 7715/16.0T8STB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Abril de 2018

Magistrado ResponsávelM
Data da Resolução12 de Abril de 2018
EmissorTribunal da Relação de Évora

Sumário: 1. O art. 1.º do DL 281/99, de 26 de Julho, na sua redacção actual, impõe a prova, na transmissão da propriedade de prédios urbanos, não apenas da existência da autorização de utilização, mas ainda que as alterações que o imóvel tenha sofrido estejam devidamente enquadradas nessa autorização de utilização.

  1. Tendo o imóvel sofrido obras que modificaram significativamente as características físicas da edificação anteriormente licenciada, cabia à promitente vendedora providenciar pela alteração da licença de utilização, mesmo que tais obras não estivessem sujeitas a controlo prévio, nos termos do art. 62.º, n.º 2, do RJUE.

  2. Tendo a entidade bancária condicionado a concessão do financiamento necessário à celebração do contrato prometido – no caso, através do recurso à locação financeira – ao licenciamento das obras de alteração feitas no imóvel, era obrigação da promitente vendedora adoptar os procedimentos necessários a esse fim, de forma diligente e de acordo com padrões de boa-fé no cumprimento do contrato.

  3. Não tendo adoptado essa conduta, não iniciando, sequer, o procedimento de licenciamento das obras de alteração feitas no imóvel no prazo que lhe foi assinalado pela promitente compradora, a promitente vendedora constituiu-se em inércia culposa no cumprimento do contrato.

  4. O art. 442.º, n.º 2, do Código Civil não é aplicável às situações de incumprimento imputável a ambos os promitentes.

  5. No caso de não cumprimento bilateral do contrato, a indemnização será fixada consoante a gravidade das culpas de ambas as partes e respectivas consequências.

  6. Se as culpas dos dois contraentes forem iguais, a indemnização deve ser excluída, devendo o accipiens restituir o sinal em singelo.

    Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo Local Cível de Setúbal, (…), Lda., demandou (…), com base num contrato promessa relativamente ao qual foi prestado um sinal de € 15.000,00, deduzindo os seguintes pedidos: i) Ser declarada a licitude da resolução do contrato, operada pela A. por incumprimento definitivo da Ré, condenando-se esta a pagar o dobro da quantia entregue a título de sinal, ou seja, € 30.000,00, acrescida dos juros legais vencidos desde a citação; ii) Caso assim não se entenda, ser reconhecido o dolo da Ré como causa do erro em que incorreu a A. na sua declaração negocial, com a consequente anulação do contrato promessa dos autos e a condenação da Ré a devolver o montante recebido a título de sinal, acrescido dos juros legais desde 05.10.2015, data em que o sinal foi constituído; iii) Caso assim não se entenda, ser reconhecido o erro sobre o objecto do negócio em que incorreu a Ré na sua declaração negocial, com a consequente anulação do contrato promessa dos autos e a condenação da Ré a devolver o montante recebido a título de sinal, acrescido dos juros contados desde a mesma data; iv) Por fim, caso nenhum dos pedidos supra mereça provimento, deve ser declarada e reconhecida a nulidade do contrato, por falta de forma legalmente exigida, condenando-se a Ré a devolver o montante recebido a título de sinal, também acrescido dos juros desde a mesma data.

    Reconvindo, a Ré pediu, por seu turno, a declaração de perda do sinal entregue, acrescida de juros sobre a referida quantia, contados desde a citação e até integral pagamento, bem como a condenação da A. como litigante de má-fé.

    Realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e a reconvenção procedente, sendo a A.

    condenada a reconhecer o direito da Ré fazer seu o valor de € 15.000,00 entregue por aquela em execução do contrato promessa celebrado em 05.10.2015, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido reconvencional e até integral e efectivo pagamento.

    Inconformada, a A. recorre e formula 72 longas conclusões, que se resumem ao seguinte: 1. Deve ser aditado aos factos provados que “A Ré requereu a legalização de ampliação de moradia, anexo, garagem e piscina, assim como a legalização de alterações em edifício destinado a complexo desportivo, por meio de requerimento ao qual foi atribuído o nº 2771/2016, no dia 15 de Julho de 2016.

  7. É ilegal a condenação da A. a pagar juros de mora à Ré sobre a quantia por esta recebida a título de sinal.

  8. Quanto ao pedido principal de reconhecimento da licitude da resolução e consequente condenação na restituição em dobro do sinal, não podem ser ponderadas estipulações verbais acessórias ao documento legalmente exigido.

  9. As irregularidades no edificado foram identificadas na avaliação bancária e a Ré comprometeu-se, na eventualidade da A. optar por recorrer à locação financeira, a “colaborar naquilo que estiver ao seu alcance e lhe for solicitado, fornecendo nomeadamente a documentação que se revelar necessária com a antecedência adequada.” 5. A A. viu-se impedida de efectuar a operação através do recurso à locação financeira, mercê das irregularidades de licenciamento do imóvel, objectivamente imputáveis à Ré, porquanto nunca forneceu a documentação necessária à celebração da locação financeira, conforme se encontrava contratualmente obrigada.

  10. Adicionalmente as partes fizeram constar do n.º 8 da cláusula primeira que “a primeira contraente declara não ter conhecimento de quaisquer factos, situações ou omissões, passadas, presentes ou futuras, que possam prejudicar o valor do imóvel ou a sua aptidão para os fins a que se destina.” 7. A irregularidade do licenciamento prejudica o valor do imóvel, e tanto assim é que foi a própria Ré a quantificar, por sua iniciativa, o valor que atribuía a esta contingência – ponto 36 dos factos provados.

  11. Mas a falta de licenciamento de parte do imóvel também prejudica a sua aptidão para os fins a que se destina, porque a utilização dos edifícios, ou a alteração da respectiva utilização, está sujeita a autorização administrativa, nos termos do n.º 5 do art. 4.º do DL 555/99 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, ou RJUE), sendo punível como contra-ordenação a ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará ou comunicação prévia (art. 98.º, n.º 1, d), do RJUE).

  12. A A. não tinha de provar o desconhecimento das irregularidades, porque esse facto não era constitutivo do direito que está na base do pedido principal. A A. apenas tinha de provar a existência das irregularidades.

  13. A irregularidade do respectivo licenciamento consubstancia um defeito jurídico de um imóvel que haja sido prometido vender, se essas irregularidades não constarem do contrato escrito.

  14. Havendo um defeito, era a Ré que tinha o ónus de provar que a A. conhecia esse defeito, essas irregularidades do licenciamento e que o contrato havia sido celebrado com base nesse pressuposto).

  15. É manifesto que a prova de que a A. alegadamente conhecia as irregularidades do licenciamento em momento prévio à assinatura do contrato promessa e que ainda assim quis contratar naqueles termos, é contrária – ou no mínimo adicional – à cláusula primeira n.º 8 do contrato.

  16. O Tribunal a quo não podia recorrer a uma presunção judicial para interpretar o conteúdo e alcance do referido n.º 8 da cláusula primeira, pois tal só é admitido nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal. E neste caso, o recurso à prova testemunhal não era permitido.

  17. O único acordo de vontades que o Tribunal pode valorar é o que consta do contrato escrito, por razões relacionadas com o regime legal da forma da declaração negocial e com as regras de direito probatório, aplicáveis.

  18. À data limite prevista para a celebração do negócio prometido (31.01.2016), a Ré encontrava-se em incumprimento de duas disposições fundamentais do contrato promessa dos autos: 1.º - não forneceu a documentação indispensável à possibilidade da A. recorrer à locação financeira, como era seu direito contratual; 2.º - o imóvel não estava plenamente licenciado, existindo áreas de construção clandestina e alterações de uso de áreas que se encontravam licenciadas para outros fins, em violação expressa do que a Ré asseverara contratualmente no n.º 8 da cláusula primeira e constituiu pressuposto da celebração deste contrato pela A., conforme provado no ponto 16 da matéria de facto.

  19. Nessa data, a Ré entrou, por isso, em mora no cumprimento dos seus deveres contratuais.

  20. A A. informou a Ré das condições a que a avaliação do Banco havia ficado sujeita, a 17.12.2015, pelo que o licenciamento do imóvel tinha impreterivelmente de ser regularizado.

  21. Era sobre a Ré que impendia o ónus de proceder a essa regularização, tanto mais que a A. tinha o direito de cumprir a promessa na modalidade de locação financeira.

  22. Ao invés de procurar regularizar o licenciamento, ou pelo menos pedir prazo à A. para o efeito, a Ré apresentou reformulações sucessivas daquilo que havia contratado.

  23. Até à data de resolução do contrato, a Ré não deu um passo no sentido de regularizar o licenciamento do imóvel, nem pediu à A. qualquer prazo para o efeito.

  24. Só a 15.07.2016 a Ré deu entrada na Câmara Municipal de Palmela do pedido de legalização das edificações existentes no imóvel, 4 meses depois de a A. ter declarado o contrato resolvido por incumprimento da Ré.

  25. Essa iniciativa revela, de forma peremptória, a indispensabilidade da regularização do licenciamento do imóvel para proceder à sua alienação.

  26. Importa proceder à análise da perda objectiva de interesse na prestação por parte do credor, neste caso a A., conforme previsto no art. 808.º do Código Civil.

  27. Os 96 dias decorridos entre o alerta da A. sobre a necessidade de se proceder ao licenciamento do imóvel e a data em que é declarada a resolução, justificam, objectivamente, a perda de interesse da A., pois a Ré não deu qualquer indicação de que iria proceder à regularização da situação – limitou-se a tentar alterar os termos do negócio, facto que reforçou a convicção da A. de que a situação não seria regularizada num prazo razoável...

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