Acórdão nº 572/16.8T9TMR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 20 de Março de 2018
Magistrado Responsável | ANA BARATA BRITO |
Data da Resolução | 20 de Março de 2018 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1.
Nos autos de instrução n.º 572/16.8T9TMR, do Tribunal de Comarca de Santarém, foi proferido despacho em que a Senhora Juíza de instrução criminal decidiu pronunciar AA, FG, MR, AB e PG, pela prática de um crime de insolvência dolosa do artigo 227.º, n.º 2, com referência às alíneas a) e b) do n.º1.
Inconformados com o decidido, recorreram os arguidos, concluindo: “I. Por acórdão proferido no processo comum coletivo n.º--/13.9GFALR, no Tribunal Judicial de Almeirim (pelo então Tribunal do Círculo de Santarém) – para o qual se remete e se dá aqui por integralmente reproduzido – o arguido JI foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples, praticado em 02.01.2013; II. O arguido JI foi ainda condenado, pelo mesmo acórdão, no pagamento da indemnização civil peticionada pelos herdeiros da vítima, concretamente no pagamento dos seguintes valores: a. À demandante ML (ora assistente), a quantia de 12.000,00€ - doze mil euros – (a título de danos morais por ela sofridos com a morte da vítima), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efetivo cumprimento; b. Aos demandantes MG, JF e DF a quantia de 10.000,00€ - dez mil euros – (a título de danos morais por ela sofridos com a morte da vítima), para cada um, acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efetivo cumprimento; c. A todos os demandantes, ML, MG, JF e DF, em conjunto, a quantia de 47.500,00€ (quarenta e sete mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efetivo cumprimento; III. À data da prática do crime de homicídio referido - 02.01.2013 - JI e a sua cônjuge, MR, eram donos e legítimos proprietários do prédio misto sito na rua 1.º de Maio,…, Frade de Baixo, freguesia e concelho de Alpiarça, com uma área total de 4.800m2, descrito na C.R.P. de Alpiarça sob o artigo --- e com as inscrições matriciais urbanas --- e --- e rústica xx – secção 051 (doravante apenas designado por “imóvel”), sendo legítimos possuidores e utilizadores daquele bem; IV. No dia 07.02.2013, os arguidos JI - àquela data, preso preventivamente - e MR celebraram e registaram “negócio”, denominado por “Doação”, que tinha por objeto o aludido imóvel, e fizeram-no a favor da filha AA e do seu cônjuge, AB, atribuindo a este “negócio” o valor global de 65.383,80€ e para tal declarando que aquela doação era feita “por conta das quotas disponíveis dos doadores”; V. O direito de propriedade sobre o referido imóvel passou, então, a estar inscrito a favor da arguida AA e do seu cônjuge, AB; VI. No dia 17.07.2013, os arguidos AA e AB celebraram novo “negócio”, intitulado por “contrato de compra e venda”, sobre o mesmo imóvel, com os arguidos FG e PG, cônjuge daquele; VII. Atribuíram, os supra referidos arguidos, a este último negócio, o valor global de 120.000,00€ a liquidar pelos adquirentes, FG e PG, em 300 (trezentas) prestações mensais de 400,00€ (quatrocentos euros) cada e passando o direito de propriedade sobre esse imóvel a estar inscrito a favor dos arguidos FG e PG; VIII. Os compradores, FG e PG, por sua vez, cederam, gratuitamente, o imóvel aos vendedores, AA e AB, “negócio” que intitularam de “comodato”, para habitação; IX. Não obstante ter sido proferida sentença no dia 07.01.2014, no procedimento cautelar que correu por apenso ao aludido processo comum coletivo n.º---/13.9GFALR-A, decretando o arresto preventivo dos valores depositados em contas tituladas pelo arguido JI, já não se encontravam nas mesmas quaisquer quantias monetárias; X. O arguido JI veio apresentar-se à insolvência no dia 17.09.2015, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência no dia 21.09.2015, transitada em julgado no dia 28.10.2015; XI. JI faleceu no dia 15.01.2017.
-
JI foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples e em pedido de indemnização civil, o que sucedeu em 16/02/2015.
-
A data do trânsito em julgado da decisão condenatória ter-se-á por essencial à apreciação do mérito do presente recurso, como adiante se verá; - cfr. documento adiante junto.
-
O Ministério Público determinou o arquivamento dos autos não se não mostrarem preenchidos os pressupostos para da prática do crime de insolvência dolosa, de onde conclui que “Os factos indiciados não preenchem o crime de insolvência dolosa porquanto o denunciado JI, à data da prática dos factos típicos, não possuía a qualidade de devedor, constituindo tal qualidade um dos elementos objetivos do tipo de crime em apreço.
-
Para além dos denunciantes, não são conhecidos quaisquer outros credores do denunciado JI, sendo certo que este só se constituiu devedor dos denunciantes com a condenação no pagamento da indemnização, no âmbito do processo-crime acima referido. Antes daquela decisão condenatória apenas se falar de uma expectativa de crédito – o que não é um crédito no sentido jurídico do termo – fundado na eventual responsabilidade pela prática de um crime. É verdade que a mera expectativa de crédito, originada pela aquisição da notícia do crime de homicídio e instauração do competente inquérito, bastou para os denunciantes desencadearem providências cautelares cíveis tendentes a evitar a perda de garantia do pagamento desse crédito provável, como sucedeu com o procedimento cautelar n.º ---/14.9TBALR da extinta comarca de Almeirim, onde viram decretado o arresto do imóvel doado pelos denunciados JI e mulher MR à filha. É que, em sede de direito civil, seja no arresto preventivo seja nos procedimentos cautelares, basta demonstrar a provável existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial, não se exigindo, ao contrário do que sucede no tipo de crime de insolvência dolosa que se vem analisando, que o crédito seja certo ou indiscutível.
-
Concluiu, em sede de inquérito, o Ministério Público que quem interveio em tais atos não tinha a especial qualidade exigida pelo tipo de crime nem agiu em benefício de um devedor. Donde igualmente se conclui que não se mostra verificado o crime de insolvência dolosa, por falta de preenchimento de um dos seus elementos objetivos do tipo – a qualidade de devedor do agente -, não obstante os indicados atos de disposição tenham sido indiciariamente praticados com o intuito de esvaziar o património de JI e inviabilizar a satisfação do crédito provável que se viria a constituir a favor dos denunciantes, fundado na eventual prática de crime. Por igualdade de razões, também não se mostram preenchidos os crimes de insolvência negligente, frustração de créditos e favorecimento de credores, previstos nos arts. 227.º-A e ss. do Código Penal, por neles ser igualmente exigida a mesma qualidade de devedor.
-
A decisão sob recurso entendeu encontrar-se indiciada a pratica pelos arguidos do crime de insolvência dolosa, sustentando tal posição na circunstância de o arguido JI ser considerado devedor a partir da data em que cometeu o crime, posição que os recorrentes discordam.
-
E sendo a questão que se mostra controversa a do conceito de devedor, a que alude o artigo 227º do Código Penal, na pessoa do arguido JI antes mesmo de ser condenado pela prática de qualquer ilícito criminal.
-
A decisão recorrida sustenta a sua opção no artigo 483º, nº.1 do Código Civil, defendendo que o arguido assume de imediato a posição de devedor aquando da prática dos actos constantes da acusação.
-
Entendemos não assistir razão ao Tribunal recorrido pois que a obrigação de indemnizar não se confunde com a figura do devedor.
-
Pela prática de ato ilícito dispõe o artigo 483º, nº.1 do Código Civil que se constitui na obrigação de indemnizar.
-
Porém, tal obrigação de indemnizar não opera automaticamente, tendo sim que ser impulsionada pelo ofendido/lesado.
-
Atente-se aos presentes autos que, na ausência de pedido de indemnização civil formulado pelos ofendidos/assistentes apenas veriam a apreciação da causa em termos criminais.
-
Não poderá concluir-se como erradamente o fez o Tribunal recorrido que a figura do devedor nasce com a prática da conduta delituosa.
-
Essa conduta delituosa apenas gera no ofendido o direito de, querendo, poder reclamar para si indemnização que, a final, sendo julgada procedente, conferirá àquele um direito de crédito sobre, aí sim, o devedor.
-
Veja a esse propósito o estatuído no artigo 71º do Código de Processo Penal que dispõe que, “O pedido de indemnização civil fundado em prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante tribunal civil, nos casos previstos na Lei.” XXVII. Depende de impulso processual do lesado a formulação nos autos de pedido de indemnização civil razão porque este apenas figurará como credor, após sentença condenatória transitada em julgado.
-
Isto porque em sede processual penal os recursos conferem efeito suspensivo às decisões, o devedor apenas se considerará como tal em processo penal, após transito em julgado da decisão condenatória.
-
Em sede processual penal inexiste qualquer retroatividade do direito do credor, ou seja, este apenas se considerará como tal a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória que aprecie, conjuntamente, o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes civis.
-
É este entendimento sufragado pela jurisprudência e doutrina ao contrario do que pretende fazer crer a decisão sob recurso.
-
Nem mesmo o Acórdão do STJ de 17.03.1991, citado pelo Acórdão do STJ de 16.05.2012, proc. n.º290/07.8PATNV.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida, tem posição diversa: “Conforme se escreveu no Ac. de 17-03-1991, tirando com a intervenção de todas as secções do STJ, a obrigação de indemnização pela perda do direito à vida, enquanto dano não patrimonial autónomo, nasce “no momento em que o agente inicia a prática do acto ilícito...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO