Acórdão nº 293-A/1999.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 28 de Junho de 2012

Magistrado ResponsávelISABEL ROCHA
Data da Resolução28 de Junho de 2012
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Processo número 293-A/1999 Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

RELATÓRIO 1. Abílio veio instaurar incidente de liquidação contra a Companhia de Seguros T…, S.A, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 603.396,40 €, acrescida de juros a contar da citação.

Para fundamentar tal pedido, alega, em síntese, que a Ré foi condenada a pagar ao Autor as quantias que viessem a liquidar-se relativamente às despesas suportadas e a suportar pela aquisição de medicamentos vários, compressas, fraldas e água, bem como as quantias correspondentes à necessidade de ajuda de uma terceira pessoa com conhecimentos de enfermagem, concretizando o valor que suporta mensalmente com tais despesas.

A Ré contestou, referindo que, nesta sede, apenas poderão vir peticionadas as despesas que o A. comprovar, sem lugar a recurso a qualquer fórmula de indemnização por supostas despesas a suportar no futuro.

Proferiu-se despacho saneador tabelar, fixou-se a matéria de facto assente e organizou-se a base instrutória que não foi objecto de reclamação.

Procedeu-se á audiência de discussão e julgamento e, após decisão que incidiu sobre a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença, decidindo-se julgar o incidente parcialmente provado e procedente e, consequentemente, condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 92.277,30 € (noventa e dois mil, duzentos e setenta e sete euros e trinta cêntimos), acrescida de juros a contar da citação.

Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, que foi admitido, apresentando alegações com as seguintes conclusões: 1. Os actos de retirar e colocar pensos, de limpar e desinfectar um estôma, de proceder à depilação da zona do estoma, a extracção manual de fecalomas e a aplicação de mini clisteres no decurso desta mesma extracção de fecalomas são cuidados de enfermagem no sentido de serem função de enfermeiro, serviços próprios de enfermaria.

  1. O que os Senhores Peritos disseram não foi que o requerente não precisava daqueles cuidados de enfermagem, uma vez que na 2ª parte da sua resposta começam por dizer que “Os cuidados referidos …”, pelo que a necessidade destes cuidados não está em causa.

  2. Os Senhores Peritos, na sua resposta, tiveram em vista não os cuidados mas a qualidade da pessoa que os prestava.

  3. No ponto 86 da sentença da 1ª instância deu-se como provado que os efeitos da extracção digital das fezes são devastadores no animo e no espírito do A.

  4. O recorrente não tem obrigação nenhuma de se sujeitar a tal suplício, porque não foi ele quem se colocou na posição de ter que retirar as suas fezes manualmente, por vezes duas vezes por dia.

  5. Quem o colocou em tal situação foi o condutor do veículo seguro na recorrida, pelo que é esta quem tem obrigação de suportar os custos dos cuidados de que o recorrente necessita para que o seu estado anímico e psíquico, a sua saúde em sentido lato, seja preservada o mais possível face às agressões de que foi vítima.

  6. Não pode a Mª. Juíza “a quo”, não pode ninguém, sustentar que o recorrente se submeta a lições dadas por alguém com conhecimentos de enfermagem para praticar no seu próprio corpo actos que o devastam do ponto de vista anímico e espiritual.

  7. O recorrente não pode ser obrigado a auto cuidar-se em termos de cuidados de enfermagem, e poderia a Mª. Juíza “a quo” ter sindicado, com recurso à sua própria avaliação da situação, a resposta dada pelos Senhores Peritos que se pronunciaram no sentido de que o recorrente não precisava de cuidados de enfermagem pois que podia ele próprio efectuá-los.

  8. O recorrente nunca foi ensinado pelo que também nunca poderia ele ter-se auto-cuidado.

  9. O recorrente não pode exigir de quem quer que seja, mesmo de familiares, que lhe preste os cuidados de enfermagem de que precisa dado, nomeadamente, a natureza delicada destes.

  10. O recorrente não é obrigado a entregar os cuidados de que o seu corpo precisa, cuidados que foram determinados por um acto ilícito violento, a um curioso, a alguém que não tem os conhecimentos técnicos necessários, que os vai ter que aprender para depois os aplicar.

  11. A responsável pelo acto ilícito, a recorrida, não tem o direito de impor ao recorrente a escolha de quem o deva tratar, ainda por cima quando os tratamentos de que o recorrente necessita revestem natureza delicada e íntima.

  12. O recorrente tem o direito constitucional à saúde e tem o direito de escolher livremente quem lhe deve prestar os cuidados de saúde de que necessita.

  13. A extracção de fecalomas não é isenta de perigos para a saúde do recorrente, podendo surgir complicações no decurso da operação.

  14. O recorrente, ou uma pessoa indiferenciada, não tem conhecimentos que lhe permitam detectar esses perigos e neutralizá-los.

  15. O que impõe que a extracção de fecalomas seja efectuada por uma pessoa qualificada, um enfermeiro.

  16. O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

  17. À Mª. Juíza bastava poder controlar o raciocínio que conduziu os peritos à resposta, e esse controlo era possível sem necessidade de quaisquer conhecimentos técnicos: Os Senhores Peritos não puseram em causa a necessidade dos cuidados mas sim quem os devia prestar.

  18. Não estava em causa quem devia prestar cuidados de enfermagem ao recorrente, mas mesmo que estivesse a Mª. Juíza não estava dependente do domínio de especiais conhecimentos técnicos para lhe poder responder: não são precisos conhecimentos técnicos para se tomar posição sobre se a vítima de uma agressão física violenta é obrigada a, por si mesma, fazer face às consequências dessa agressão, nomeadamente ao nível do recurso a cuidados de enfermagem de que necessita ou se tem direito de recorrer à ajuda de 3ª pessoa, ficando os encargos de tal ajuda por conta do responsável da lesão.

  19. No caso dos autos a reconstituição natural concretizar-se-ia, além do mais, na reconstrução do esfíncter anal do recorrente que foi destruído pela agressão de que foi vítima.

  20. Não sendo possível tal reconstrução deve o autor da lesão suportar os custos que advenham para o recorrente para, da forma mais correcta possível, substituir as funções do esfíncter destruído, custos esses que se objectivam em danos futuros.

  21. Se para obter este resultado o recorrente tem de recorrer a cuidados de enfermagem os custos destes cuidados não podem nunca recair sobre si, nem podem ser evitados, só para que a recorrida, responsável pelas lesões, os não tenha que suportar.

  22. Não sendo possível a restauração natural do ânus do recorrente, a sua reconstituição para que ele possa realizar a sua própria função biológica, a alternativa a essa função biológica, a extracção das fezes digitalmente, tem que ser assegurada por 3º à custa da recorrida por ser de uma violência inaudita impô-lo ao próprio recorrente, assim se aproximando o mais possível da restauração natural a que o lesante está obrigado.

  23. Não estando como não estava, sob o império da prova pericial, a Mª. Juíza “a quo”, não validou devidamente outros meios de prova, nomeadamente testemunhais, que foram produzidos.

  24. Face à prova testemunhal produzida o recorrente considera ter sido incorrectamente julgado o nº. 6 da B.I., nomeadamente tendo em conta os depoimentos das testemunhas Manuel Armando Esteves Costa, que prestou depoimento da audiência de julgamento de 29 de Setembro de 2009, conforme acta respectiva cujo depoimento se encontra gravado do nº. 20090929102149 – 19525 – 64806 de 00.00 a 36.47, Catarina Sofia Barreiros Ribeiro, que prestou depoimento da audiência de julgamento de 29 de Setembro de 2009, conforme acta respectiva cujo depoimento se encontra gravado sob o nº. 20090929121543 – 19525 – 64806 de 00.00 a 36.12, Manuel Pereira Cerqueira que prestou depoimento da audiência de julgamento de 27 de Janeiro de 2011, conforme acta respectiva cujo depoimento se encontra gravado sob o nº. 20111027152737 – 19525 – 64806 de 00.00 a 22.06 e Orlando Pinho Silva que prestou depoimento da audiência de julgamento de 29 de Setembro de 2009, conforme acta respectiva cujo depoimento se encontra gravado sob o nº. 200909291113524 – 19525 – 64806 de 00.00 a 12.04.

A Ré contra alegou, defendendo que o recurso foi interposto extemporaneamente, tendo em conta que não é aplicável o regime de recursos introduzido pelo Decreto Lei 303/2007 de 24 de Agosto, mas antes o regime anterior, ou seja e no que concerne ao prazo de interposição, a redacção do art.º 685.º n.º 1 do CPC, introduzida pelo art.º DL 180/96 de 25/09. Sem prescindir, pugna pela manutenção da sentença apelada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO OBJECTO DO RECURSO Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações, as questões a decidir são as seguintes: Admissibilidade do recurso; Alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pelo Autor; Se deve ser fixado e em caso afirmativo em que montante, o valor indemnizatório a atribuir ao Autor, pelas despesas relativas à necessidade de ajuda de uma terceira pessoa com conhecimentos de enfermagem.

Os factos provados que fundamentaram a decisão recorrida são os seguintes: 1) Pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido a fls. 1691 a 1722 dos autos principais, já transitado em julgado, foi a Ré Companhia de Seguros T…, S.A. condenada a pagar ao Autor Abílio, para além de outros valores que aqui não interessam, “as quantias que vierem a liquidar-se oportunamente, relativamente às despesas suportadas e a suportar (pelo aqui Autor) pela aquisição de medicamentos vários...

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