Acórdão nº 477/15.0T8FAF.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 23 de Fevereiro de 2017

Magistrado ResponsávelMARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2017
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Sumário do acórdão : (art. 663.º n.º 7, do CPC): I – É sobre o comprador que impende o dever de examinar a coisa, daí que o prazo, de seis meses, deva ser contado, não da data da descoberta efectiva, mas daquela em que o defeito deveria ter sido descoberto, caso o comprador tivesse agido diligentemente.

II – O prazo de caducidade vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, na medida em que o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos dos arts. 916.º e 917.º, do CC.

III - Constitui requisito específico da relevância do dolo a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja causa do negócio.

Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem (art. 254º, n.º 1).

* ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I. Relatório E intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J pedindo que seja declarado anulado o negócio de compra e venda referidos nos artigos 1 a 5 da petição inicial, celebrado entre autora e ré, e, em consequência, seja o veiculo entregue à ré e esta condenada a restituir à autora a quantia recebida de € 10.800,00 acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento, a quantia de € 5000,00 acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento a titulo de restituição da quantia do veiculo entregue pela Autora, a quantia de € 30,00 diária, desde Janeiro de 2015, até efectiva resolução da acção, a título de paralisação do veiculo que à data da propositura da acção se cifrava em € 6.200,00, bem como a quantia de € 2.000,00 a titulo de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Alega, em síntese e no essencial, que no dia 18 de Setembro de 2012, adquiriu à ré, pelo preço de € 15.800,00, o veículo automóvel usado de matrícula NG, marca Renault, modelo Megane, de cor preta, preço aquele que a autora pagou em numerário no valor de € 10.800,00 e ainda mediante a entrega de um veiculo de marca Renault, modelo Clio, de 2005, com a matricula AV, que a ré avaliou em € 5.000,00.

Invoca que apenas adquiriu tal veiculo porque a ré lhe garantiu que o aludido veículo, apesar de usado, estava em muito bom estado de conservação e funcionamento, sem qualquer acidente e a quilometragem de 63.000 km que o mesmo apresentava era real e verdadeira, bem sabendo a ré que tal veículo se destinava a ser utilizado pela autora diariamente no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para leccionar aulas de condução, bem como para se deslocar para outros locais, transporte de alunos aos exames a Braga ou Penafiel.

Aduz que a autora apenas circulou com o veículo cerca de 3000 km quando veio a descobrir, no início do ano de 2015 que o mesmo veículo já tinha feito três revisões em França, datadas de 3/11/2010, 3/06/2011 e 23/01/2012 em que apresentava, respectivamente, 29.175Km, 60.277Km e 89.933Km e que em 15 de Outubro de 2012, fez a revisão completa, onde foi mudada a corrente de distribuição, pelo que o carro já tinha mais de 120.000 km quando foi vendido, sendo certo que, aquando da sua venda, apresentava no respectivo contador apenas 63.000Km, e que a Ré garantiu à A. que eram reais e verdadeiros, daí a A. ter aceite pagar o preço de 15.800.00€.

Mais refere que a Ré sabia perfeitamente que a A. só comprava o veículo por estar convencida de que o carro tinha a quilometragem real de 63.000 Km, pois, se assim não fosse, nunca a A. teria adquirido o veículo nem pago o preço de €15.800.00, e que a desconformidade entre a quilometragem efectiva do veículo e aquela que o mesmo registava, decorreu de alteração do respectivo instrumento de medição dos quilómetros, levada a cabo pela Ré ou por ordem desta, para que o mesmo, quando fosse alienado, aparentasse ter um valor superior ao seu valor real, empregando sugestões e artifícios, com a intenção, consciência de induzir e manter em erro a A., sendo a vontade desta de negociar e aceitar o negócio determinado por tais sugestões e artifícios, pois se esta se tivesse apercebido do erro, não faria o negócio com a Ré.

*A ré contestou, impugnando os factos e invocando a caducidade do direito, alegando, em síntese, que o negócio foi precedido de várias conversações entre o sócio gerente da autora, o filho do sócio gerente da ré e este, e que aquele teve oportunidade de experimentar a viatura por várias vezes, nunca tendo sido decisivo nas negociações havidas, a quilometragem da viatura, mas sim o ano da mesma, as condições em que a mesma estava ao nível da chapa, pintura e motor e ainda o preço.

Refere que não enganou a A., por ter sido o veículo vendido no mesmo estado em que fora adquirido.

Por outro lado, ainda que se admitisse que os quilómetros eram um elemento essencial, decisivo na aquisição do veículo, o certo é que não se poderá anular o negócio porquanto a autora não intentou a acção nos seis meses subsequentes ao conhecimento nos termos do artigo 917.° do C.Civil, pelo que o direito da autora caducou.

Pugna, assim, pela improcedência da acção.

*Foi realizada audiência prévia, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova que não sofreram qualquer reclamação.

Após instrução procedeu-se a audiência final, a que se seguiu a sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a ré J do pedido formulado pela autora E.

*II-Objecto do recurso Não se conformando com a decisão proferida veio a A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões: 1- Ao contrário do decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância, a aqui recorrente/autora logrou provar que os quilómetros reais do conta-quilometros eram essenciais para a compra do veículo; 2- Da conjugação da matéria dada como provada, designadamente, dos pontos 5, 6, 9 e 10, resulta claramente que a Ré agiu como dolo; 3- Do depoimento supra transcrito, de F resulta que o número de quilómetros foi essencial para a aquisição do veículo aqui em causa e que o preço do veículo foi de 15.800.00€, pois a A. entregou à troca um outro veículo no valor de 5.000.00€; 4- É manifestamente evidente que na aquisição de um veículo automóvel o número de quilómetros real, é essencial e imprescindível para a realização do negócio; 5- Foi dado como provado no ponto 4 dos factos dados como provados que “o documento respeitante ao veiculo referido em 2. ostenta que o mesmo já fez três revisões em França, datadas de 3.11.2010, 3.06.2011. e 23.01.20.2 em que apresentava, respectivamente, 29.175km, 60. 277km e 89.933 km. ", 6- Foi também dado como provado no ponto 9 dos factos dados como provados que “A Declaração Aduaneira do Veículo (DAV) para a circulação do veículo referido em 2. foi emitida no dia 15 de Outubro de 2012. "; 7- E que "Na Declaração Aduaneira do Veículo (DAV) constam como quilómetros do veículo referido em 2. 63.316km." - ponto 10 dos factos provados; 8- Ora, podemos concluir que em 23.01.2012 o veículo tinha 89.933km e que em 15.10.2012 constava da DAV apenas 63.316km; 9- O que significa que foi alterada a quilometragem do veículo, pela Ré, para que a Autora o adquirisse, por aquele preço; 10- Tal elemento que foi ocultado e adulterado pela compradora, a Ré, sabendo que era condição essencial para a aquisição do veículo; 11- Foi referido pela testemunha F, (Minuto 19:44- 19:50) Adv. da A.: Era condição essencial para comprar o carro, a quilometragem? Testemunha: Sim. Sim.

Adv. da A.: Isso não tem dúvidas? Testemunha: Sempre foi.

12- Perante este depoimento que foi prestado de uma forma isenta, natural, e com conhecimento dos factos em causa, impõe-se a alteração da matéria de facto; 13- Deve ser dado como PROVADO que: “A ré sabia perfeitamente que a autora só comprava o veículo por estar convencida de que o carro tinha a quilometragem real de 63.000 km, pois, se assim não fosse, nunca a autora teria adquirido o veículo nem pago o preço de € 15.800,00." - ponto 7, dos factos não provados.

14- Deve ser dado como PROVADO que: “A autora comprou o veículo na convicção de que este havia rodado apenas 63.000,00 km, pois, nunca o teria adquirido caso soubesse que o mesmo, na realidade, já possuía mais de .120.000,00." - ponto 8 dos factos não provados; 15- E o ponto 2 dos factos provados que o preço do veículo foi de 15.800.00€, pois a A. entregou, à troca, um veículo no valor de 5.000.00€; 16- Conjugando a matéria de facto dada como provada e a que agora se pede a alteração impõe-se concluir que a Ré agiu com dolo ao ocultar a real quilometragem do veículo automóvel, vendendo-o por um preço que seria superior ao seu valor real; 17- Estamos aqui perante uma compra e venda defeituosa porquanto o vendedor usou de artifícios para enganar o comprador e ocultar-lhe os quilómetros do veículo.

18- “A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor (. . .) Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira refere-se aos vícios da coisa e a segunda à falta de qualidades, enquanto a terceira abrange estas duas situações"; 19- O defeito da coisa com relevância para a dinâmica contratual não se circunscreve apenas ao vício que desvalorize a coisa ou que impeça a realização do fim a que se...

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