Acórdão nº 1518/16.9T8BGC-E.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 18 de Janeiro de 2018
Magistrado Responsável | JO |
Data da Resolução | 18 de Janeiro de 2018 |
Emissor | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO: Inconformados com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que formularam no requerimento inicial de apresentação à insolvência, José e mulher, Maria, interpuseram o presente recurso, concluindo a sua alegação com as seguintes conclusões: 1 - Por não terem forças patrimoniais nem rendimentos pessoais que lhes permitissem solver dívidas de crédito à habitação e garantias dadas a dívidas de uma sociedade (em que esta não conseguiu pagar o que devia), os RECORRENTES requereram - por apresentação - a sua insolvência e a exoneração do passivo restante. A insolvência dos Recorrentes foi declarada, mas o pedido de exoneração do passivo restante foi indeferido liminarmente.
2 - O Tribunal elegeu como fundamento de facto a doação que os Recorrentes tinham feito, cerca de 18 meses antes de se apresentarem à insolvência, da casa de habitação que possuíam, aos seus filhos menores, mas sobre a qual pendia, e pende, hipoteca para garantia, no essencial, de crédito à habitação, de valor superior ao valor da casa.
Como fundamento legal, o Tribunal louvou-se no disposto nos art.°s 238º, 1, e) e 186º, 2, b) e d), do CIRE.
3 - O Tribunal não fez a menor referência, quer em termos de facto quer em termos de direito, ao facto da doação não ter qualquer efeito prático na insolvência, pois os créditos cuja satisfação garantia - e garante - são de valor superior ao valor dessa casa.
Só por si, e objectivamente, este facto era suficiente para evidenciar que os Recorrentes, podendo ter agido de forma legalmente incorrecta, não agiram de má-fé, nem em prejuízo de quem quer que seja.
4 - É do despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do pedido restante, que vem o presente recurso.
5 - O instituto da exoneração do pedido restante foi introduzido na Ordem Jurídica Portuguesa como instrumento jurídico que visa atenuar as perversões praticadas por um sistema económico - hoje abreviadamente definido como "capitalismo financeiro", bem protegido pelos subservientes Estados - desumano, do qual as populações não se podem libertar das dependências que ele desenvolve (já nem o salário se recebe em notas, nem sequer em cheque).
Por isso o instituto da exoneração do passivo restante deve ser compreendido à luz dos princípios consignados no art.° 1.° da Constituição - mormente o da dignidade da pessoa humana -, e não de falsos moralismos que favorecem os novos feudalismos e seus suseranos.
6 - Com ressalva do respeito devido, a decisão sob recurso postergou o "cânone" constitucional que a devia animar. E, assim, ou o Tribunal não reparou no facto do bem doado valer bem menos que o crédito cuja satisfação assegura - por via de hipoteca - ou, postergou esse facto, o que seria bem mais censurável.
7 - Fosse qual fosse a causa da desconsideração judicativa desse facto, o certo é que o Tribunal, evidenciando a dimensão "neo-capitalista" (como agora se diz) das normas em que se louvou, e, assim, não as interpretando em conformidade com a Constituição (como, adiante, se evidenciará), objectivamente condenou os Recorrentes à pobreza perpétua, em face do que dispõe o artigo 233º, 1, c) do CIRE, e do celebrado entendimento que os tribunais vão sufragando, de que basta o salário mínimo para viver dignamente.
8 - Assim, por muitos anos que vivam, os Recorrentes, durante essa vida, não podem aspirar a outro universo sócio-económico que não seja o dos que auferem o salário mínimo.
9 - (As "profecias" de Nietzsche e Foucault cumprem-se, o regresso à "gleba" parece irreversível ... ) 10 - No geral, e pelo ora concluído, a decisão sob recurso atenta contra o Pórtico Constitucional (artº 1º da Constituição). Mas não se fica por aí.
11 - A decisão sob recurso até começa por dizer que "constam dos autos elementos que indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa dos insolventes na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do CIRE".
12 - As palavras sublinhadas - "elementos que indiciam" - mostram como, sem cumprimento da pertinente actividade judicativa, como o mostra a já referida desconsideração da casa doada valer menos que o crédito por cuja satisfação responde, se "condenam" objectivamente duas pessoas ao estado de pobreza perpétua, atento o que dispõe o art.º 233º, 1, c) do CIRE.
13 - Essa decisão - na parte em que decide com base em "elementos que indiciam a culpa, sem produção de prova da sua existência - é uma decisão, não só injusta como preocupante, pois viola os direitos fundamentais do direito ao direito, do direito a uma decisão justa e do direito a um processo equitativo. Estes direitos estão consagrados no art.º 20º, 1 e 4, da Constituição aplicando-se directamente estas normas, por força do art.º 18º, 1, também da Constituição.
Essa forma de julgar violou também o princípio da segurança jurídica, imanente ao princípio do Estado de direito, ambos consagrados no artigo 2º da Constituição, directamente aplicável por força do seu art.º 18º, 1.
14 - Ao decidir "indiciariamente" a sorte de duas pessoas, por toda a vida de cada uma delas, o Tribunal violou o dever de fundamentar a decisão, elencando os factos, enunciando a norma ou princípio normativo que sustenta a decisão - neste caso a decisão por indícios - e a demonstração crítico-analítica de que os factos são os que dão corpo ao caso e não outros, e o direito do caso é esse e não outro.
Ao decidir assim, e na parte que está a ser considerada, o Tribunal violou o disposto no art.º 205º, 1, da Constituição e o disposto nos art.ºs 154º, 607º, 1,2,3 e 4, 615º, 1, b) e c) e 613º 3 do C.P.C.
15 - O segundo tópico fundamentador da decisão sob recurso, como vimos, acima, no parágrafo 3 da fundamentação, foi o seguinte: "Tendo-se apurado que os insolventes doaram aos seus três filhos menores (...) um prédio urbano (...) com o valor patrimonial de € 139.607,04, por título de doação outorgada em 29-05-2015 (...), doação essa a que atribuíram o valor de 140.400,00, quando o passivo é de mais de € 450.000,00 e não dispõem de mais nenhum outro bem para além dos respectivos vencimentos, facilmente se conclui que os Insolventes dispuseram de todo o seu património em proveito de terceiros e celebraram negócios ruinosos (...) em proveito de pessoas com eles especialmente relacionadas, integrando, dessa forma, as alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE", que o Tribunal diz serem "presunções inilidíveis".
16 - Como já se demonstrou, o Tribunal não se preocupou com as causas da doação nem nas da insolvência. Ignorou totalmente o facto do prédio doado suportar uma hipoteca que garante a satisfação de um crédito de valor superior ao desse prédio. Nem apreciou o facto da doação, em face da letra do art.º 612º, 1, segunda parte do C.C, e 120º e 121º do CIRE, ser um acto inócuo - quanto aos efeitos - e que não foi objecto - nem podia ser - de qualquer ocultação.
17 - Ora, o Tribunal, em vez de verificar e declarar que a doação não seria idónea para causar dano a quem quer que seja, nem constituir qualquer benefício para os donatários, por causa da hipoteca que onera o prédio, e que sempre era um acto resolúvel sem custos, em vez de validar positivamente o comportamento dos Recorrentes por não terem impugnado a resolução da doação, entretanto declarada, até toma essa atitude como reconhecimento de que queriam prejudicar a massa.
18 - Tal interpretação é abusiva porque, ao banco, credor hipotecário, pela perspectiva racional, interessaria mais que o crédito lhe fosse sendo pago, que a venda do prédio, em processo de insolvência, em que o produto da venda, em regra, fica sempre abaixo do valor real, enquanto que os demais credores que, em tais circunstâncias, nada de melhor obteriam (a não ser o "gosto" da "terra queimada"), também não sofriam qualquer agravamento da situação, em consequência da doação Ora, tivera o Tribunal cumprido a injunção que lhe dirige o n.º 2 do art.º 202º da Constituição, teria também verificado que as coisas eram factualmente assim, e que, de tais factos, não decorre a existência de má-fé. De qualquer modo, se entendesse que o juízo de falta de má-fé implicava mais averiguações, então era isso que o Tribunal devia ter feito, e não decidir com base em alguns indícios, e sem reparar nos que inculcam o contrário.
19 - A decisão recorrida também deve ser revogada por outras razões. Nomeadamente quando é dito que a doação foi prejudicial à massa insolvente, invocando-se o disposto nos...
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