Acórdão nº 524/16.8T8EPS.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 17 de Dezembro de 2018

Magistrado ResponsávelHELENA MELO
Data da Resolução17 de Dezembro de 2018
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório J. P. e D. F., casados entre si, propuseram a presente ação de processo comum contra P. P., pedindo que se decida: “1 - decretar e condenar a Ré a deixar livre e desimpedido o prédio dos autores e com o mesmo objetivo condenada a retirar da faixa de terreno em questão, a instalação do gás, a casota de um cão e as duas torneiras e respetivas mangueiras, de que ela se serve quando entende, tal como se alegou no anterior art. 29º; 2 – decretar e condenar a Ré a reconhecer que os autores têm o direito de construir faixa de terreno com a largura de três metros a fim de garantir o respetivo direito de passagem; 3 – decretar e condenar a Ré a reconhecer que os autores têm o direito de vedar o seu prédio, no lado sul, com uma grade em ferro; 4 - decretar e condenar a Ré a pagar aos autores uma indemnização de cinco mil euros, pelos prejuízos causados, como se alegou no anterior art. 42º; 5 – decretar e condenar a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos lesivos dos direitos referidos; 6 - ordenar o cancelamento de quaisquer registos efetuados em contrário do aqui peticionado.” Alegam, para tanto e em resumo, que a ré lhes doou o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, prédio esse que confronta com o prédio da ré identificado no artigo 6º da petição inicial, sendo que as partes acordaram a constituição de uma servidão de passagem e de vistas a onerar o prédio dos autores e a favor do prédio da ré, o que fizeram por escritura pública. Porém, as necessidades do prédio da ré, designadamente quanto à servidão de passagem, satisfazem-se com uma largura de 3 metros, inferior à que consta da referida escritura, motivo pelo qual entendem poder ocupar e construir na parte restante do seu prédio. Acresce que, quanto à servidão de vistas, uma vez que na escritura se consignou que não podem ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros no prédio dos autores, na parte voltada a sul, para o prédio da ré, deve entender-se que os autores podem vedar o seu prédio com uma grade.

Finalmente, a ré mantém no prédio dos autores uma instalação de gás, a casota do cão, duas torneiras e respetivas mangueiras, do que se serve quando entende, o que constitui uma ocupação abusiva por parte da ré.

Toda esta situação causa incómodos, preocupações e desgostos aos autores, pelo que devem ser indemnizados pela ré em quantia não inferior a € 5.000,00.

Citada, a ré veio apresentar contestação, impugnando os factos e alegando que a pretensão dos autores carece de absoluto fundamento legal, uma vez que as servidões, tendo sido constituídas por contrato, deverão ser reguladas, quanto à sua extensão e exercício, pelo respetivo título (contrato), não podendo ser modificados sem o consentimento da ré.

Termina pedindo a condenação dos autores como litigantes de má-fé, por alterarem conscientemente a verdade dos factos e fazerem um uso reprovável do processo, no pagamento de uma indemnização a seu favor de valor não inferior a € 5.000,00.

Realizou-se a audiência final e de seguida foi proferida sentença com o seguinte teor decisório: “Em face do exposto, o tribunal decide:

  1. Julgar a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência: a) Condenar a ré a retirar do prédio referido em 1. dos factos provados as torneiras e as respetivas mangueiras de que se serve (referidas no artigo 29º da petição inicial); b) Absolver a ré do demais peticionado; B) Não condenar os autores por litigância de má-fé nos presentes autos.

    Custas a cargo dos autores e ré, na proporção de 5% e 95%, respetivamente – artigo 527º, n.º 1 e 2, do C.P.C..” Os AA. não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

  2. Da instalação de gás da Ré no prédio dos Autores contra a vontade destes: A) O Tribunal “a quo”, ao contrário do que decidiu em relação às torneiras e mangueiras, negou que os Autores tivessem o direito de exigir à Ré que retirasse a instalação de gás que esta mantém no prédio dos primeiros, argumentando que tal exigência constitui um “abuso de direito”, solução que consideramos excessiva, desequilibrada, abusiva e em nada consentânea com a fatualidade provada.

  3. Ora, é indubitável que os Autores são os proprietários do prédio mencionado no Facto Provado 1) e, enquanto tal, gozam, nos termos do art. 1305º do Código Civil, de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem. Entre esses direitos está o de decidir o que pode ou não ocupar o seu prédio, nomeadamente a instalação de gás da Ré. Está dentro do seu poder/direito tolerar essa instalação durante algum tempo no seu prédio, tal como lhes compete decidir quando terminar com essa tolerância e exigir que a mesma seja retirada.

  4. Os Autores ao remeter uma carta à Ré exigindo a sua remoção e concedendo um prazo razoável de 30 dias para o efeito, atuaram de boa fé, no exercício do seu direito de propriedade sobre o referido imóvel e dentro dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Tal ocorreu, quer quando os Autores exigiram à Ré que retirasse a mangueira e as torneiras do seu prédio (pretensão essa aceite pelo Tribunal), quer quando lhe exigiram que retirasse a instalação de gás (pretensão essa que o Tribunal indeferiu). Na nossa opinião, não existe qualquer motivo para tratar de modo diferente a questão das mangueiras relativamente à questão da instalação de gás.

  5. O Tribunal “a quo” não entendeu assim, argumentando com 1) o decurso do tempo de 4 anos: (“durante mais de quatro anos, o autor sempre concordou, consentiu e nunca se opôs a que a ré mantivesse tal instalação do gás no seu prédio”) e 2) Essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes á sua alteração ou substituição: (“tanto mais que se tratava de uma instalação de gás, isto é, uma infraestrutura necessária ao seu prédio. Em face do exposto, temos como certo que se justifica que a confiança da ré seja devidamente tutelada, no que à instalação do gás diz respeito, atenta a essencialidade da infraestrutura referida e às dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição”) E) Ora, desde logo relativamente ao segundo argumento mencionado na anterior Conclusão D) (essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição) não foram considerados provados quaisquer factos que permitissem constatar essa afirmação, factos esses que também não foram sequer alegados pela Ré na sua contestação.

  6. A aplicação do regime jurídico do abuso de direito depende de haverem sido alegados e provados pelas partes factos que possibilitem concluir de tal modo, bem como de os mesmos estarem compreendidos no pedido da parte beneficiária, atento o princípio da vinculação do tribunal aos factos e pedido invocados pelas partes, os eventuais efeitos jurídicos susceptíveis de serem extraídos desse exercício abusivo do direito, o que manifestamente e na nossa opinião não ocorre no presente caso.

  7. Motivo pelo qual esses argumentos/factos (essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes á sua alteração ou substituição) nunca poderiam ter sido utilizados pelo Tribunal “a quo” na fundamentação da sua decisão, o que deve ser decretado.

  8. De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, a verdade é que esses factos não correspondem à verdade, constituindo conclusões precipitadas e não baseadas em qualquer meio probatório. Seria fácil, rápido e barato mudar a localização da instalação de gás atualmente existente no prédio dos Autores para o prédio da Ré. Conforme demonstram as fotografias juntas aos autos, trata-se de uma pequena instalação, feita em tijolo, facilmente replicável no seu prédio. Por esse motivo, tais factos nunca seriam susceptíveis de fundamentar uma situação de abuso de direito.

  9. Por outro lado, relativamente ao primeiro argumento mencionado na anterior Conclusão D. (mero decurso do tempo- cerca de 4 anos), entendemos que esse argumento/facto também não é suficiente para concluir por uma situação de abuso de direito. Segundo o acórdão do STJ de 19/10/2000, publicado em CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84, citado nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 02/07/2009 e05/02/2013, ambos com texto integral em www.dgsi.pt, no seguimento da doutrina de autores alemães citada pelo Prof. António Meneses Cordeiro, em Da Boa Fé no Direito Civil, II, nota da pág. 811, a verificação do abuso de direito, na modalidade de “suppressio”, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua.

  10. Ora, dos referidos Factos Provados não resulta qualquer indício que os titulares do direito se tivessem comportado como se o não tivessem ou como se não mais o quisessem exercer ou que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer ou que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua. Sendo certo que tais factos também nunca foram sequer alegados pela Ré na sua contestação. Deste modo, o simples decurso do tempo sem o eventual exercício de um direito não é suficiente para se poder concluir pelo abuso do direito. Muito menos por um prazo tão curto como são cerca de 4 anos.

  11. Neste termos, inexiste qualquer situação de abuso de direito, pelo que deve ser deferido o pedido de condenação da Ré a retirar a instalação de gás que esta mantém no prédio dos Autores contra a vontade destes, com as consequências legais.

  12. Da definição do conteúdo e extensão da servidão de vistas: L) Ora, mais uma vez é indubitável que os Autores são os proprietários do prédio mencionado no Facto Provado 1) e, enquanto tal, gozam, nos termos...

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