Acórdão nº 3798/16.0T8BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 13 de Setembro de 2018
Magistrado Responsável | ANA CRISTINA DUARTE |
Data da Resolução | 13 de Setembro de 2018 |
Emissor | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO Maria deduziu ação declarativa contra “X Portugal – Companhia de Seguros, SA” pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 309.330,32, acrescida dos juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento, bem como as quantias relativas a acompanhamento médico regular da especialidade de ortopedia e psicologia, a sessões de fisioterapia (pelo menos 20 sessões, duas vezes por ano), ao uso frequente de AINE’s e analgésicos, novas cirurgias das lesões intra-articulares do joelho esquerdo e o auxílio permanente de uma terceira pessoa, atentas as dores de que com regularidade é acometida, em montante a liquidar em momento posterior.
Alegou que foi vítima de atropelamento na passadeira, causado, com culpa exclusiva, por veículo segurado na ré, que já assumiu a responsabilidade, faltando calcular os danos.
A ré contestou, aceitando a responsabilidade, mas impugnado os danos e seus valores.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor: “Julga-se parcialmente procedente a presente ação e, consequentemente, 4.1.
Condena-se a ré a pagar à autora a quantia de € 131.480,65 (cento e trinta e um mil e quatrocentos e oitenta euros e sessenta e cinco cêntimos) a título de indemnização, sendo € 87.480,65 por danos patrimoniais e € 44.000,00 por danos não patrimoniais; 4.1.1.
Condena-se ainda a ré a pagar à autora juros de mora calculados à taxa legal, devidos desde a citação sobre o montante de € 87.480,65, e devidos desde a presente data sobre o montante de € 44.000,00, até efetivo pagamento.
4.1.2.
Condena-se ainda a ré a pagar à autora o montante correspondente às despesas futuras com a medicação regular, nomeadamente analgésicos, e antiespasmódicos ou antiepiléticos, consultas pela especialidade de Psiquiatria e da medicação prescrita, e com tratamentos médicos, designadamente tratamentos ocasionais de fisioterapia, a liquidar ulteriormente nos termos do art. 609º/2 do Código de Processo Civil.
4.2.
Absolve-se quanto ao mais a ré do pedido formulado”.
Recorreu a ré, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões: 1. Foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos: (…) 29. Tais sequelas são incompatíveis com o exercício da actividade profissional habitual de empregada doméstica.
(…) 31. A autora claudica e não consegue andar sem o apoio de canadianas, tem perda de mobilidade, não conseguindo permanecer muito tempo em pé, nem pode fazer muitas das tarefas diárias.
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Entende a recorrente que o item 29 não deveria ter sido dado como provado, devendo antes ser dado como não provado.
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A autora foi sujeita a exame pericial médico-legal, que entre outros items concluiu que “atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas não afectando a examinada em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais, atribui-se um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 21 pontos”.
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O relatório pericial elaborado pelo perito do INML determinou, quanto à repercussão permanente na actividade profissional, que “as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares”.
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No que se refere às ajudas técnicas que a autora necessitará no futuro, o relatório pericial nada refere quanto à necessidade permanente do uso de canadianas.
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Embora no capítulo “queixas” e no tocante à rubrica “posturas, deslocamentos e transferências”, se refira que a autora “deambula com o auxílio de duas canadianas, sentindo dificuldades acrescidas na marcha, subir e descer escadas”, a verdade é que, na sua conclusão, o perito não entendeu necessário referir que a autora tenha necessidade de utilizar duas canadianas no futuro.
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Foram pedidos esclarecimentos ao perito, o qual, quanto a este ponto em particular, referiu o seguinte (cfr. o respectivo relatório complementar): “Se a perícia for lida com atenção, está descrito ao nível do joelho esquerdo, o mais limitado, flexão não dolorosa até aos 90/100º, com instabilidade no sentido ântero-posterior e transversal. Estas limitações condicionam dificuldades na transposição de barreiras como subir e descer escadas ou a limpar pavimentos. Todavia, julgamos a examinada capaz de desempenhar outras tarefas de empregada de limpeza como limpar móveis, vidros, aspirar, com dificuldades acrescidas é certo.” 8. Nos referidos esclarecimentos, o perito médico-legal considerou que o sintoma de joelho artrósico, de que a autora sofre, resulta de doença natural e não é consequência do acidente, isto é, trata-se de fenómeno degenerativo de que a autora já sofria.
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E, por isso, explicita o perito que “será difícil quantificar o que resulta das sequelas como limitação laboral, ou se os anos e as alterações degenerativas articulares deles resultantes”.
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E remata: “ou seja, não admitimos uso de cadeira de rodas, e mesmo canadianas (…) no nosso entendimento, o seu uso não se torna imprescindível para a deambulação” – cfr. o cit. relatório complementar.
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Deste modo, não deveria ter-se dado como provado, no ponto 31 da matéria de facto, que “a autora (…) não consegue andar sem o apoio de canadianas”.
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Este ponto da matéria de facto provada acaba por condicionar toda a estrutura da decisão proferida.
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Com efeito, parte-se do princípio de que a autora “não consegue andar sem o apoio de canadianas”, para se concluir que, em virtude dessa limitação, a autora não conseguirá nunca mais exercer a sua profissão habitual – que se considera ser de empregada doméstica (quanto a nós, erradamente) – e, em consequência, atribui-se-lhe uma indemnização a título de dano biológico, na vertente patrimonial, como se a sua incapacidade fosse de 100 pontos (!!!) e não de 21 pontos, como foi fixado no relatório pericial.
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Aparentemente, a prova testemunhal mereceu mais credibilidade à Mmª Juiz a quo, do que o relatório pericial, que desvalorizou completamente neste particular.
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As únicas três testemunhas ouvidas em audiência de julgamento são o filho, a nora e a filha da autora.
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Trata-se de três pessoas com manifesto interesse na decisão da causa, cujos depoimentos, sendo embora aparentemente isentos, não deixaram de ser direccionados a um único objectivo: ajudar a autora a obter a maior indemnização possível.
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Para atingir esse objectivo, era essencial que todas as testemunhas dissessem que a autora não conseguia andar, a não ser com a ajuda de duas canadianas.
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O filho da autora L. S., primeira testemunha a ser ouvida, só veio a falar das canadianas quando essa declaração lhe foi “arrancada” por perguntas de resposta claramente induzida.
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Com efeito, na primeira fase do seu depoimento, é-lhe perguntado genericamente quais as limitações com que a sua mãe ficou; e a testemunha responde de forma espontânea, enuncia as várias dificuldades que a mãe tem, mas não fala, em momento algum, do uso das canadianas, o que é sintomático. Vejamos esses excertos do seu depoimento: Gravação, 05:12 Advogada: Na sequência do acidente, com as sequelas que a sua mãe ficou, a sua mãe ficou com algumas limitações. Quais? Testemunha: situações físicas… subir escadas era complicado… não consegue estar muito tempo de pé… deitada pouco tempo consegue estar, porque dói-lhe… dói-lhe deitada… a pé dói-lhe de pé… é um bocado esta situação. E pronto, basicamente, não consegue fazer grande coisa só.
Advogada: Mas tem alguma autonomia, no dia-a-dia dela? Testemunha: Sim, tem alguma autonomia, acompanhada, porque nós não temos confiança porque temos provas de que não consegue levar até ao fim o que idealiza. Idealiza qualquer coisa e até ao fim não a vai concretizar.
Gravação, 06:12 Advogada: Ela consegue vir à rua sozinha? Testemunha: Não, não.
Advogada: Tratar de algum assunto pessoal, ir a um Banco, ou isso? Testemunha: É assim: tem medo de escadas; depois, tem medo de tudo… está sempre a queixar-se, e é verdade que dá tonturas. Se olhar para cima, tonturas, e cai. E por esses sentidos todos, a gente mesmo que queira não a pode deixar só… e mesmo que ela queira, também não consegue… basicamente, é isto: tem de estar na totalidade sempre acompanhada.
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Momentos depois, a testemunha é confrontada com perguntas de resposta induzida, às quais, obviamente, responde pela afirmativa, não conseguindo, porém, explicar mais nada sobre o uso das canadianas: Gravação 10:48 Advogada: Depois do acidente e depois de começar a ter uma vida normal, ela sempre andou apoiada em canadianas? Testemunha: Sempre, sempre.
Advogada: E não as dispensa, de modo algum? Testemunha: Nunca, nunca.
Advogada: Não consegue?...
Testemunha: Tem de… tem de… e há sempre alteração climatérica… há sempre um desequilíbrio… tanto está bem, como… esforça-se um pouco… aquece os músculos e podem não estar com a mesma força… tem um desgaste, digamos, não tem capacidade.
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Como se alcança deste depoimento, a testemunha L. S., quando estimulada a falar espontaneamente sobre as limitações da autora, sua mãe e com quem convive de perto, nada diz sobre o uso de canadianas.
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Apenas por insistência da Ilustre Advogada da autora e mediante perguntas claramente tendentes a induzir a resposta, é que a testemunha confirma o uso de canadianas (“sempre, sempre”), não conseguindo, porém, explicar como e em que circunstâncias as mesmas são utilizadas pela autora.
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Também do depoimento da testemunha Célia, nora da autora, se percebe que, numa primeira fase e embora lhe seja perguntado, não fala das canadianas.
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Só numa segunda fase, quando inquirida pela Mmª Juiz, as suas respostas (acerca do uso de canadianas) são também titubeantes: primeiro, dizendo que a autora se apoia nos móveis, e só depois, perante grande insistência da Mmª Juiz e em resposta a uma série de perguntas claramente indutoras – porque lhe é...
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