Acórdão nº 6562/10.7TBCSC.L1-6 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 09 de Outubro de 2014
Magistrado Responsável | ANA DE AZEREDO COELHO |
Data da Resolução | 09 de Outubro de 2014 |
Emissor | Court of Appeal of Lisbon (Portugal) |
Decisão Texto Parcial:
ACORDAM do Tribunal da Relação de Lisboa: I) RELATÓRIO AD e MJ, casados entre si, instauraram a presente ação declarativa de condenação com processo comum ordinário contra QD , SA, alegando, em síntese, terem adquirido à Ré um lote de terreno, em loteamento por esta efetuado, sem que os arruamentos respetivos tenham sido cedidos ao domínio público, antes se mantendo propriedade da Ré, o que determinou o encrave do lote adquirido e a constituição contratual de servidão de passagem pelos ditos arruamentos.
Mais alegaram que posteriormente renunciaram à aludida servidão, pretendendo nesta ação seja a mesma constituída por decisão judicial a favor do mencionado lote enquanto dominante e de modo «que permita o acesso de pessoas e bens, a pé, de bicicleta ou de veículo automóvel, de qualquer tipo ou dimensão, ao imóvel sito na Rua …, através dos arruamentos existentes no prédio designado por QM , identificado neste requerimento, e a entrada e saída, pelos locais existentes para o efeito, para e dos ditos arruamentos para quem vier da via pública, ou a ela se dirigir, com destino ao ou vindo do mencionado imóvel sito na …».
A Ré contestou invocando que os Autores sempre usaram da servidão legal de passagem contratualmente constituída sem que pagassem a contrapartida fixada, nunca tendo a Ré impedido o seu acesso ao lote em causa, estando os Autores impedidos de renunciar à servidão constituída em virtude de a mesma ser uma servidão legal, embora voluntariamente constituída, renúncia que a Ré nunca aceitou, sendo que, de todo o modo, a renúncia seguida de pedido de constituição sempre estaria ferida de abuso de direito. Conclui pela improcedência da ação por falta de objeto já que a servidão se encontra constituída.
Foi proferido despacho tabelar de saneamento e dispensada a condensação.
Cumprido o demais legal procedeu-se a julgamento, tendo o tribunal proferido decisão de facto sem reclamações.
Antes da prolação da sentença, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciar-se sobre a natureza da renúncia à servidão, sobre boa-fé dos Autores enquanto litigantes, sobre abuso de direito e sobre o regime legal que permitiu o loteamento referido nos autos, mantendo-se os acessos na propriedade da sociedade loteadora.
Os Autores pronunciaram-se concluindo pela procedência da sua pretensão e pela inexistência de abuso de direito, invocando ainda ser leonina e usurária a servidão constituída.
A Ré pronunciou-se alegando que as questões relativas ao loteamento são do foro administrativo e mantendo a posição da contestação.
Foi proferida sentença que considerou que do comportamento dos Autores decorre que nunca pretenderam renunciar à servidão contratualmente constituída, a qual se mantém, pelo que improcede o pedido da sua constituição judicial.
Desta sentença apelam os Autores que concluíram como segue as suas alegações: «1. A decisão de improcedência considera que não houve renúncia à servidão e que se mantém existente a servidão de passagem contratualmente criada e por isso julga improcedente o pedido dos Autores.
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Tal está em clara e manifesta oposição com a fundamentação de facto assente, designadamente com os pontos 12, 17 e 18 dos factos assentes.
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A sentença recorrida é, consequentemente, nula, nos termos do disposto no art. 668.º, n.º 1, al. c) do CPC.
SUBSIDIARIAMENTE 4. Estando assente que os Autores efetuaram e notificaram declaração de renúncia a servidão de passagem e que a respetiva inscrição desse ónus foi cancelada no registo predial, dúvidas não existem de que a servidão de passagem que foi objeto dessa declaração de renúncia, válida e eficaz, se extinguiu.
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Ao assim não considerar, a decisão recorrida violou o disposto no art. 1569.º, n.º 1, al. d), e n.º 5 do Código Civil.
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Inexistindo, assim, servidão de passagem referente ao encravado prédio dos Autores e estando reunido todo o condicionalismo do art. 1550.º do Código Civil, assiste aos Autores o DIREITO POTESTATIVO de que seja judicialmente criada a servidão legal de passagem conforme os termos que indicam no seu pedido.
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Ao assim não proceder, a sentença recorrida violou o mencionado art. 1550.º do Código Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e declarada nula a sentença recorrida e ordenada a baixa á 1.ª instância para que seja proferida sentença expurgada da nulidade verificada, ou, subsidiariamente, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declare a criação, por via judicial, da servidão legal de passagem, nos termos requeridos pelos Autores no pedido que formulara, assim se fazendo a melhor JUSTIÇA!».
A Recorrida contra-alegou defendendo o bem fundado da decisão.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, o que tudo foi mantido nesta Relação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) OBJECTO DO RECURSO Tendo em atenção as conclusões da Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar e decidir da alegada nulidade da sentença e da pretensão de constituição de servidão legal de passagem.
III) FUNDAMENTAÇÃO 1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Não tendo sido impugnada a decisão quanto a tal e não havendo razão de modificação oficiosa, configura-se do seguinte modo a matéria de facto assente, incluindo transcrição de trechos do alvará: 1.
Os autores são donos do prédio urbano designado por lote .., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Cascais sob o artigo n.º .., e descrito na 1ª conservatória do registo predial de Cascais sob o n.º ….
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A ré, que anteriormente usou, sucessivamente, as denominações de QM SC, SA, e QM SE, SA, adquiriu, por compra a E , , o imóvel designado por QM , descrito na 1ª conservatória do registo predial de Cascais sob o n.º ….
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A autorização de loteamento que deu origem ao prédio dos autores, não determinou que fossem cedidos ao domínio público os espaços de implantação dos arruamentos no interior da QM , designadamente de acesso a todos e cada um dos lotes constituídos, constando da descrição do prédio que é constituído por «65 lotes de terreno, numerados de 1 a 65, sendo que os lotes designados pelos nºs 1 a 62 destinam-se a habitação (…), o lote 63 destina-se a um hotel de 18 bungalows (…), o lote 64 destina-se a club house (…), o lote 65 destina-se a restaurante (…), e a área restante do prédio destina-se a campo de golfe (…)»; 4.
Assim, todos os arruamentos no interior da QM , porque não destacados com os lotes e porque não cedidos para domínio público, continuam a integrar a propriedade privada da ré.
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Deste modo, também o lote dos autores não tem acesso à via pública, a não ser através dos arruamentos interiores da QM , propriedade da ré.
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O lote 42 dos autores confronta a poente com a ré (um dos referidos arruamentos interiores), do sul com o lote 43, nascente com lote 33 e norte com o lote 41.
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A situação de falta de acesso à via pública é comum à generalidade dos lotes.
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A favor de alguns dos lotes vieram a ser constituídas, por contrato, servidões de passagem, consistindo no direito de passagem a pé de pessoas e de qualquer veículo sobre os arruamentos existentes do prédio QM .
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Na escritura de compra e venda do lote dos autores, cuja cópia consta de fls. 26 e segs., também foi acordada a constituição de servidão idêntica, constando da respectiva escritura, a esse propósito, a declaração da vendedora seguinte: “Que a presente venda se regula ainda pelas cláusulas constantes de um documento complementar elaborado nos termos do número dois do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado ..
“B) – Que também pela presente escritura, pelo preço de vinte e cinco mil escudos, .. constituem uma servidão predial que consiste no direito de passagem a pé de pessoas e de qualquer veículo sobre todos os arruamentos existentes no prédio .. sito na QM ..
“Que esta servidão é constituída ainda nas seguintes condições: “UM – O proprietário do prédio dominante pagará ao legítimo proprietário do prédio serviente .. a quantia mensal correspondente a metade do salário mínimo nacional em vigor para a indústria e serviços, a título de comparticipação nas despesas de conservação, manutenção e segurança dos arruamentos existentes no prédio serviente (…).
“QUATRO – O pagamento referido .. só dera devido a partir do momento em que a moradia a construir esteja concluída.” 10.
Consta da mesma escritura a declaração do ora autor, no sentido de: “a) Que aceita a venda .. nos termos e condições expressas que se obriga a cumprir; e “b) Que aceita a servidão...
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