Acórdão nº 57/04.5IDLSB.L3-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 15 de Abril de 2015

Magistrado ResponsávelLAURA GOULART MAUR
Data da Resolução15 de Abril de 2015
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa: Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 10 de Abril de 2014, foi determinado o reenvio do processo para novo julgamento restrito ao apuramento dos factos necessários à decisão sobre se a sociedade recebeu ou não, na totalidade ou em parte, e, na afirmativa, em que parte, os valores do IVA a que se referem as declarações, com vista a apurar se se mostra preenchido o tipo de crime de abuso de confiança fiscal.

* Em 10 de Dezembro de 2014 foi proferida a sentença, que se transcreve: “ 1 - RELATÓRIO: Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação, sufragada por pronúncia, contra Futura Importações, Lda., Contribuinte Fiscal nº.... com sede social na Estrada ..., nº..., em Lisboa, e AA., nascido a 23 de Novembro de 1961, natural de Moçambique, filho de BB. e de CC..., casado, residente na avª ..., lote BC – 12º C, em Lisboa, titular do C.C. nº..., - imputando ao 2º arguido a prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, nºs 1, 2, 4 e 5 do R.G.I.T.; - imputando à 1ª arguida a prática da mesma infracção, nos termos do art. 7º, nº1 do R.G.I.T..

* Os arguidos apresentaram contestação e rol de testemunhas.

* Procedeu-se a julgamento, sem a ocorrência de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.

* 2 - FUNDAMENTAÇÃO: 2.1. - Matéria de facto provada: a) A sociedade arguida é uma sociedade por quotas, tendo por objecto social a actividade de armazenista e vendas por grosso e retalho de material eléctrico e afins, brindes, brinquedos, loiças, confecções e artigos desportivos, código CAE 051190, actividade essa que iniciou em 1988, desenvolvendo-a desde 2001 na sede supra referida.

b) É colectada, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.

c) O 2º arguido exerce a sua gerência desde a constituição da sociedade arguida.

d) No exercício da sua actividade, no período compreendido entre os meses de Setembro de 2002 e Setembro de 2004, a sociedade arguida, representada pelo 2º arguido, vendeu produtos e liquidou IVA a terceiros, seus clientes.

e) O 2º arguido e a sociedade arguida, no período de tempo referido, não procederam à entrega do IVA relativo ao mesmo, no valor total de 968.705,88€, tendo decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a sua entrega.

f) Os arguidos foram notificados para procederem ao pagamento da quantia em dívida, juros e coimas, no prazo de 30 dias; não o fizeram dentro desse prazo.

g) A gerência da 1ª arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que lhe estava vedado reter o IVA liquidado e devido à Fazenda Nacional, e que a sua conduta era proibida e punida por lei.

h) Entretanto e por conta do período de imposto referido em d), já foi paga a quase totalidade do montante em dívida, remanescendo por pagar apenas quantia de 332.198,91€ (267.411,37€ e 64,787,54€).

g) O 2º arguido continua a exercer a sua função de gerente; vive em casa de um amigo; tem três filhos, de 24, 20 e 16 anos de idade.

h) A sociedade arguida pagou os salários aos seus cerca de 29 trabalhadores.

i) O 2º arguido pretende pagar ao Fisco o montante ainda em dívida.

j) Os arguidos têm antecedentes criminais pela prática de crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, mas por factos de 2007.

* 2.2. - Matéria de facto não provada: Nenhuma.

* 2.3. - Motivação: O Tribunal formou a sua convicção com base: - na confissão livre, integral e sem reservas efectuada pelo 2º arguido; bem como nas suas declarações complementares relativas à respectiva situação pessoal, familiar e profissional; - no depoimento de Jaime ..., Inspector das Finanças instrutor do processo, o qual confirmou o pagamento parcial da quantia em dívida, dando a conhecer o remanescente que se encontra por pagar; evidenciou objectividade e isenção; - no depoimento de Nuno..., TOC da sociedade arguida, o qual deu a conhecer ao Tribunal as dificuldades pelas quais a mesma passou, com muitas dívidas de clientes à mesma; evidenciou objectividade e isenção; - nos documentos juntos aos autos.

Antecedentes criminais: C.R.C. de fls. 1027 e ss. e 1046 e ss..

* 2.4. - Aspecto jurídico da causa: À sociedade arguida e ao 2º arguido é imputada a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, nº1, ambos do R.G.I.T.; sendo que a sociedade arguida responde nos termos do art. 7º do mesmo diploma.

Dispõe o art. 105º, nº1: "1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

  1. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. (…) 5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a 50000€, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.”.

    Art. 7º, nº1: “As pessoas colectivas (…) são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.”.

    São elementos típicos objectivos deste tipo de crime, a apropriação de prestação tributária, total ou parcial, pelo responsável pela entrega dos rendimentos tributários deduzidos (prestação essa retida na fonte a título definitivo ou prestação recebida de terceiros que haja obrigação legal de liquidar, nos casos em que a lei o preveja).

    No que respeita ao elemento subjectivo, a lei basta-se com um dolo genérico (art. 14º do C. Penal), traduzido na consciência por parte do arguido de que se está a apropriar de uma prestação tributária que deveria entregar ao Estado, assumindo aquele a intenção de não entregar à administração fiscal o montante referente ao imposto liquidado e retido, e de se apropriar do mesmo.

    A consumação deste tipo de crime dá-se com a apropriação, com a inversão do título da posse, ou seja, quando o agente passa de possuidor legítimo em nome alheio a possuidor ilegítimo em nome próprio; apropriação que tem de ser traduzida por actos objectivos reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como sua.

    A utilização da prestação tributária, ainda que não em benefício próprio/pessoal, como é o caso da sua utilização para pagar salários ou mercadorias com intenção de manter a empresa em laboração, consubstancia uma apropriação; com efeito, a utilização da prestação tributária para outros fins é, desde logo, uma disposição da mesma, em que o fiel depositário lhe dá destino diverso daquele a que está obrigado, actuando como seu dono.

    O gerente que usa voluntária e indevidamente, na sua empresa, valores recebidos ou liquidados a título de qualquer imposto, competindo-lhe entregá-los ao Estado, apropria-se dos mesmos, mesmo que não retire benefício pessoal directo desse acto; sendo que só o efectivo recebimento ou retenção do montante da prestação em causa permite falar em inversão do título da posse e, consequentemente, em apropriação.

    Resulta cristalino da matéria de facto provada que a empresa arguida, através da sua gerência, praticou o crime que lhe é imputado.

    E neste contexto, se é inarredável a existência da apropriação de prestação tributária, esta deve ser entendida cum granum salis.

    Nos termos sobreditos e reportando-nos ao caso concreto, o Tribunal crê que efectivamente quem geria a empresa arguida não actuou com o propósito de aumentar o património individual à custa do Fisco, e que realmente não obteve, de tal retenção, qualquer benefício próprio/pessoal.

    Terá sido sua intenção conservar, ainda que artificialmente, a empresa a trabalhar.

    Porém, tal deixa intocada a realidade da apropriação.

    Praticou a 1º arguida e o 2º arguido, o crime que lhes é imputado, mostrando-se preenchidos todos os elementos do...

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