Acórdão nº 303/13.4PCAMD.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 20 de Abril de 2017

Magistrado ResponsávelANTERO LU
Data da Resolução20 de Abril de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I Relatório Nos autos de Processo Comum Singular, a correr termos na Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local da Amadora, Secção Criminal, Juiz 2, no decurso da audiência de julgamento, sessão de 12/07/2016, documentada a fls. 913 a 915 dos autos, a Meritíssima Juiz, proferiu o seguinte despacho: (transcrição) “Nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 359º do CPP, comunica-se a alteração substancial dos factos por se entender que da prova produzida – à luz das versões de arguido e assistente, mais ninguém terá assistido à prática dos factos -, é susceptível de se vir a impor uma diversa qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia, ou seja, é susceptível de vir enquadrar-se os mesmos, do ponto de vista objectivo, no tipo de homicídio na forma tentada, p. p. pelos art. 131º; 22º e 23º, todos do Cód. Penal.

Mais se esclarece que a alteração é comunicada neste momento, desde logo, porque, à excepção do elemento subjectivo, que de resto parece não compaginar-se com o demais que ali é narrado, a própria factualidade vertida na pronúncia terá este outro enquadramento.

Assim, e de harmonia com a celeridade processual, ponderando que decorreram três anos desde os factos em causa, parece-nos ser este o momento adequado para comunicar esta alteração.

Sucede ainda que este Tribunal é incompetente para julgar tais factos - maxime, os atinentes a um elemento subjectivo compaginável com o demais que é narrado com a pronúncia que é susceptível de poder vir a resultar da prova produzida e a produzir e que se consubstancia na intenção de tirar a vida ao assistente.

Assim, e não sendo tais factos autonomizáveis, proceda-se ao envio dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

Notifique.” (fim da transcrição) *** Inconformado o Ministério Público veio interpor o presente recurso, a fls. 929 a 935, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição) 1.ª - Nestes autos foi submetido a julgamento o arguido V..., pronunciado como autor material da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143º, nº1 e 145º, nº1, al.a) e nº2, por referência ao artº 132º, nº1 e 2 al.c), todos do C.Penal; 2.ª - No decurso da audiência de julgamento, no dia 12.07.2016, a M.ma Juiz comunicou que, perante a prova produzida em audiência do julgamento, não estaríamos perante um crime de ofensa à integridade física qualificada, de que o arguido vinha pronunciado, mas antes perante um crime de homicídio na forma tentada, o que significaria estar-se perante uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, nos termos do art.º 1.º, al. f), do C.P.Penal, a submeter ao regime do art.º 359.º do mesmo diploma; 3.ª – Mais comunicou e decidiu não serem os novos factos autonomizáveis; 4ª – Perante essa comunicação, e não tendo havido oposição a Mmª Juiz deu por encerrada a audiência e ordenou a remessa dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes; 5.

ª - Ora, a lei distingue, no art.º 359.º do C.P.Penal, em matéria de alteração substancial, entre factos autonomizáveis e factos não autonomizáveis; 6.ª - Os factos são autonomizáveis quando podem, por si só, ser susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo; 7.ª – Por outro lado, os factos não são autonomizáveis “quando formam juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização” (Frederico Isasca), ou seja, quando são insusceptíveis de valoração jurídico-penal autónoma em relação aos factos objecto da acusação; 8.ª - Assim, factos novos que se traduzem numa agravante modificativa (qualificativa) especial, ou na prática de crime mais grave, em como é exemplo o caso dos autos (praticar os factos descritos na pronúncia com intenção de tirar a vida) constituem, claramente, factos não autonomizáveis; 9.ª - Não sendo os novos factos autonomizáveis, impõe o art.º 359.º do C.P.Penal que o processo em curso prossiga os seus termos com os factos anteriores, ignorando o tribunal os factos novos; 10.ª – Significa isto que, no caso em apreço, e porque os factos não eram autonomizáveis do objecto do processo, o que a M.ma Juiz deveria ter decidido era o prosseguimento do processo em curso com os factos anteriores, ignorando o tribunal os factos novos e proferindo a final uma sentença de mérito; 11.ª – Assim, ao determinar a remessa do processo ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, o despacho ora recorrido, violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 359.º, n.ºs 1, 2 e 3, do C.P.Penal; 12.

ª - Pelo que o mesmo deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento do processo em curso com os factos anteriores contra o arguido, ignorando o tribunal os factos novos e proferindo a final uma sentença de mérito; V. Ex.

as, porém, e como sempre, farão Justiça! (fim de transcrição) *** O assistente J… respondeu ao recurso, nos termos constantes de fls. 970 a 986, concluindo nos seguintes termos: (transcrição) 1. Não pode desde logo deixar de se assinalar a irrecorribilidade do despacho em crise, atentas as circunstâncias do caso concreto.

  1. Na realidade, o Ministério Público questiona a aplicação por parte do Tribunal a quo do disposto no art.º 359.º do CPP, o que, por força do art.º 118.º, n.º 2 desse mesmo diploma legal, configura mera irregularidade.

  2. Não tendo pois o Ministério Público arguido em momento oportuno esse vício, deve o mesmo considerar-se sanada, não assistindo assim legitimidade e fundamento para, em sede de recurso, vir obter um efeito que se lhe encontra vedado.

  3. Já no que concretamente diz respeito ao mérito do recurso, permita-se a nota de que não se afigura totalmente líquido que, no caso concreto, se esteja verdadeiramente em face de uma alteração de factos.

  4. Na realidade, o acontecimento histórico pelo qual o Arguido responde é sempre o mesmo, o qual se encontra claramente descrito na pronúncia.

  5. E não se contraponha que o elemento subjectivo põe em causa este raciocínio, já que de acordo com entendimento doutrinal e jurisprudencial o dolo de ofensa à integridade física é compatível com o dolo de homicídio, sobretudo quando está em causa determinado tipo de lesões.

  6. Por conseguinte, concluindo-se que ocorre no presente caso apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos, deveria o Tribunal a quo ter procedido à aplicação do mecanismo previsto no art.º 358.º do CPP, embora com remissão prévia dos autos para Tribunal Colectivo, ao abrigo do art.º 33.º, n.º 1 do CPP, por carecer de competência para prosseguimento do julgamento.

  7. De resto, a mesma solução se impõe caso se entenda que se está diante de uma alteração substancial dos factos, atentos os valores em jogo.

  8. Com efeito, a posição seguida pelo Ministério Público acaba por redundar na impunidade de um acto de homicídio, ainda que na forma tentada, com tudo o que de nefasto daí resulta, designadamente em termos de justiça material e inconstitucionalidade.

  9. Importa por conseguinte proceder, por força do disposto no art.º 204.º da CRP, à não aplicação da norma constante do art.º 359.º, n.º 1 do CPP, por materialmente inconstitucional, na medida em que impede a prossecução da garantia dos direitos e liberdades fundamentais e do respeito pelos princípios do Estado de direito democrático como tarefa fundamental do Estado, para além de atentar contra o princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, contra o princípio da inviolabilidade do direito à vida, contra o princípio da legalidade da promoção processual e, finalmente, contra o princípio do caso julgado, o que se argúi para os devidos efeitos.

  10. Na realidade, resulta manifesto que, no caso concreto, a aplicação dessa norma não é admissível, já que da mesma resulta a desconsideração em julgamento e consequente imputação ao Arguido de um crime de homicídio, na forma tentada, sendo evidente que a interpretação do disposto no art.º 359.º, n.º 1 do CPP, no sentido de determinar que uma alteração de factos não autonomizáveis descritos na acusação ou na pronúncia não possa ser tomada em conta pelo tribunal de julgamento para efeitos de condenação no processo em curso, nem implicar a extinção da instância, é materialmente inconstitucional, por violação dos arts. 2.º, 9.º, al. b), 18.º, 20.º, n.º 1, 24.º, 29.º, nrs. 1 e 5, e 202.º da CRP, que se argúi para os devidos efeitos.

  11. De resto, essa inconstitucionalidade é ainda mais impressiva quando se constata que o que está em causa não é mais que uma alteração que incide apenas sobre o elemento subjectivo do crime, não podendo deixar de relevar-se que viola o disposto nos arts. 2.º, 9.º, al. b), 18.º, 20.º, n.º 1, 24.º, 29.º, nrs. 1 e 5, e 202.º da CRP a...

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