Acórdão nº 168/17.7YUSTR.L1.-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 25 de Outubro de 2017

Magistrado ResponsávelMARGARIDA RAMOS DE ALMEIDA
Data da Resolução25 de Outubro de 2017
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam na 3ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa * I–Relatório: 1.– Em 19 de Junho de 2017, foi proferida sentença que declarou nula a decisão administrativa, considerando improcedentes os demais fundamentos do recurso de impugnação apreciados.

  1. – Inconformada, veio a M. – SCM, s.a. interpor recurso, relativo à parte da decisão que julgou improcedentes as nulidades por si arguidas, pedindo a revogação da sentença, nesta parte e a sua substituição por outra que declare a nulidade da prova recolhida nestes autos daí se retirando as necessárias consequências.

  2. – O recurso foi admitido, por despacho de fls. 1679, tendo sido determinada a sua subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

  3. – O Mº Pº e a Anacom apresentaram resposta a esse recurso, suscitando ambos a questão prévia da irrecorribilidade do recurso, o que determinaria a sua rejeição. Suscita ainda a Anacom a ilegitimidade da recorrente, defendendo, subsidiariamente, a improcedência do recurso.

  4. – Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs visto.

    II.– Ponto prévio.

    Pese embora a questão que se passará a apreciar pudesse ser decidida por despacho proferido pela relatora - nos termos do artº 417 nº6 al. b) do C.P. Penal - a verdade é que desse despacho cabe reclamação para a conferência, atento o vertido no nº8 da mesma disposição legal.

    Assim, e uma vez que o despacho que admitiu o recurso decidiu que o mesmo subiria nos próprios autos e não em separado, por razões de mera economia processual, atendendo-se ainda à natureza e aos prazos substantivos e adjectivos relativos a este tipo de infracções, opta-se por se proceder ao conhecimento da questão da admissibilidade do recurso directamente em conferência, nos termos do artº 420 do C.P. Penal.

    III–Apreciando.

    Da admissibilidade do recurso interposto 1.– Façamos uma breve resenha do desenrolar dos autos: a.

    - Por decisão de 9 de Fevereiro de 2017, a ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) condenou a arguida na coima única de € 120 000 pela prática de cinco contra-ordenações graves p. e p. pelo art. 113º, nº 2, h) da LCE, por violação das obrigações previstas no nº 6 do Regulamento nº 169/2013, de 15/05/2013 e em conformidade com o disposto no art. 37º, nº 1, a) da LCE, das quais quatro a título negligente e uma a título doloso. A ANACOM condenou ainda a arguida na sanção de admoestação pela prática de dez contra-ordenações p. e p. pela mesma norma da LCE por violações idênticas mas respeitantes à prestação de informações incompletas.

    b.

    - Inconformada, a arguida recorreu desta decisão administrativa para o TCRS.

    c.

    - A ANACOM manteve a decisão administrativa.

    d.

    - O Ministério Público apresentou os autos para distribuição como recurso de impugnação judicial.

    e.

    - O recurso da arguida foi admitido liminarmente e, após realização de audiência de julgamento, no dia 19/06/2017, foi proferida sentença.

  5. – Na parte que ora nos importa, o TCRS pronunciou-se nos seguintes termos: (…) III.– QUESTÕES PRÉVIAS.

    3.1.

    - Da nulidade da prova obtida em violação do princípio nemo tenetur, da nulidade da prova recolhida pelos agentes de fiscalização e da valoração probatória dos autos de diligências de fiscalização.

    Remetendo para os fundamentos de defesa expostos no relatório, a arguida/recorrente veio sindicar a validade da prova recolhida e utilizada pela ANACOM na motivação da matéria de facto invocando a preterição do princípio nemo tenetur – ponto 2.2. do recurso de impugnação - cfr. artigos 47.º a 82.º do recurso de impugnação; e a proibição de prova relativa aos autos de diligências de fiscalização - ponto 2.3. do recurso de impugnação - cfr. artigos 83.º a 117.º do recurso de impugnação, e ponto 2.4. do recurso de impugnação - cfr. artigos 118.º a 148.º.

    Vejamos cada um destes fundamentos, previamente à fundamentação da matéria de facto e da convicção probatória.

    * 3.1.1.

    - A sequente questão decidenda a tratar é saber até que ponto a arguida/recorrente deste processo pode ser sancionada com base em prova recolhida através do suposto exercício de poderes de regulação, fiscalização e supervisão da autoridade administrativa.

    O iter processual/probatório a relevar para o conhecimento da questão é o seguinte: - O presente processo tem por base elementos recolhidos no âmbito de quatro acções de fiscalização distintas (duas acções de fiscalização à PTC e duas acções de fiscalização à TMN), sendo as acções de fiscalização feitas em duas rondas subsequentes no tempo, e tendo, ainda posteriormente, a ANACOM recolhido elementos, no âmbito dos seus poderes de fiscalização, junto de cada uma das empresas; - Após essa segunda ronda e após a conclusão pela existência de indícios de incumprimento do Regulamento n.º 169/2013, foram enviados, em 12 de Agosto de 2014, pedidos de informação à M. e à PTC, conforme fls. 157 e 811 dos autos, nos quais era mencionado que os mesmos tinham sido elaborados nos termos do disposto nos artigos 108.º e 109.º, n.º 1, alínea c) da LCE, i.e. ao abrigo dos poderes de fiscalização da ANACOM, sendo que “a não disponibilização a esta Autoridade das informações/documentação acima referidas consubstancia a prática de uma contraordenação grave, prevista e punível nos termos do disposto na alínea mm) do n.º 2 do artigo 113.º da LCE”; - A ANACOM solicitou o envio de “cópia dos acordos de interligação ou outros acordos, celebrados com os respetivos operadores referentes à utilização dos números 1820, 1891, 1893 e 1896 e aos seus preços de retalho, em particular os que se encontravam em vigor entre 19.02.2014 e 28.03.2014, bem como os que vigoram na presente data”, tendo ainda solicitado então à PTC o envio de “cópia dos acordos comerciais celebrados com o designado Club Passport, relativo às ofertas promocionais prestadas através do número 1820”.

    * O princípio do direito à não auto-incriminação[1] credita e investe na noção de que o visado num processo sancionatório tem o direito de, livremente e sem punição ou oneração, recusar colaborar com a acção sancionatória, seja através do mero silêncio ou, mais concretamente, através da recusa na apresentação de meios de prova.

    É certo que tal princípio contra a auto-incriminação do arguido não encontra consagração expressa na Constituição. No entanto, isso não significa que o princípio não tenha natureza constitucional, sendo pacífico o entendimento a que se trata de um princípio constitucional não escrito. “No que ao direito processual português especificamente concerne, a vigência do princípio, nemo tenetur se ipsum accusare afigura-se-nos unívoca” - MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 125.

    O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de reconhecer em diversos acórdãos que é “inquestionável” que o princípio nemo tenetur assume consagração constitucional, destacando-se, entre outros, os Acórdãos do TC. n.ºs 695/95, 542/97, 304/2004, 181/2005, 461/2011, 340/2013 e 418/2013, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt.

    Sobre a ratio desta presença garantística de ordem constitucional, “reconhecer-se que estes direitos processuais são um meio ou forma de concretizar um determinado direito fundamental não implica que este seja o seu fundamento directo e imediato. Desde logo se aponta que o próprio conceito de dignidade humana recobre de forma mediata toda a matéria penal e processual penal de um Estado de Direito”, sendo reflexo da essência de um processo penal em que se reconhecem e tutelam as garantias inerentes à qualificação do arguido como um autêntico sujeito processual - FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTA ANDRADE, Supervisão, Direito ao Silêncio, e Legalidade da Prova”, in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 41.

    Outra leitura possível é a de enquadrar o direito à não auto-incriminação como um corolário do “fair trial”, ou do processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º1 na CEDH, e no artigo 20.º, n.º4 da Lei Fundamental – neste sentido VÂNIA COSTA RAMOS, Corpus Juris 2000 - Imposição ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare, Revista do Ministério Público, n.º109, Jan/Mar 2007, pág. 69-72. Sobre o âmbito da validade material do princípio (delimitação do alcance e dos limites) acolhemos aqui a concepção ampla, ao invés de uma concepção restritiva[2] inerente à mera faculdade de o arguido não prestar declarações.

    “…esta liberdade analisa-se numa dupla dimensão ou função. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa. (…) Pela negativa, a liberdade de declaração ganha a estrutura de um autêntico Abwehrrecht contra o Estado, vedando todas as tentativas de obtenção por meios enganosos ou por coacção de declarações auto-incriminatória” - MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 120-121.

    Se, na dogmática do processo sancionatório de estrutura acusatória típico dos Estados de Direito, está assente a absoluta inexistência de obrigação de confissão verbal de prática da infracção, surgem, reiteradamente, novas frentes normativas de problematização do princípio do nemo tenetur, não raras vezes promovidas pelo Direito Público de natureza não penal[3].

    Em situações de conflito entre o estatuto do arguido como sujeito processual e a efectivação do direito processual probatório “não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou, quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva” -MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 127.

    No Direito contra-ordenacional, mercê da maior dispersão legiferante dos múltiplos regimes especiais, o problema adquire contornos de tema aberto, discutível e passível de variações normativas, doutrinárias e jurisprudenciais.

    Daí que urja uma consolidação doutrinária e jurisprudencial dos...

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