Acórdão nº 478/14.5JFLSB-I.L1-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 23 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelJORGE RAPOSO
Data da Resolução23 de Novembro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam em conferência na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO Inconformado com o despacho que indeferiu a arguição de irregularidade de despacho proferido pelo Ministério Público proferido em inquérito, MUM interpôs recurso, sustentando que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que ordene a entrega ao arguido de cópias dos suportes técnicos das intercepções telefónicas efectuadas pelas autoridades portuguesas e espanholas envolvendo o seu telemóvel, formulando as seguintes conclusões: I. O Arguido pediu que lhe fossem disponibilizadas cópias dos suportes técnicos das intercepções telefónicas efectuadas pelas autoridades portuguesas e espanholas envolvendo o seu telemóvel, o que foi indeferido por despacho do Ministério Público.

  1. Por entender que o sentido do mesmo contrariava as disposições legais relevantes, o Arguido arguiu a respectiva irregularidade junto do Tribunal Central de Instrução Criminal, que não a reconheceu.

  2. Não pode o Arguido, porém, conformar-se com o conteúdo desta decisão, na medida em que o entendimento aí espelhado não corresponde à interpretação correcta das disposições legais relevantes, nem respeita a mais recente decisão deste Tribunal relativa a esta matéria, traduzindo-se numa decisão que mina o principio da igualdade de armas e o direito a um processo justo e equitativo IV. Segundo o despacho recorrido, o Arguido não tem o direito de requerer cópias de todas as intercepções telefónicas feitas ao seu telemóvel - só daquelas que pretenda transcrever para juntar ao processo.

  3. Ora, como se verá, esta posição faz recair sobre o Arguido um ónus impossível de cumprir, coarctando significativamente as suas garantias de defesa e acentuando a desigualdade de armas pré-existente (face à acusação).

  4. De facto, nos termos dos artigos 86.°, n.º 6, al, c), e 7, do CPP, ao arguido assiste o direito de “consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes” do processo, assim como de todos os meios de prova.

  5. Foi ao abrigo desta regra que o Arguido requereu que lhe fossem entregues cópias dos suportes digitais contendo as intercepções telefónicas de que foi alvo e que constam do processo, para poder preparar a sua defesa.

  6. Contra, o Ministério Público alegou que, nos termos do artigo 188.°, n.º 8, do CPP - no que concerne a escutas telefónicas - não há um direito a obter cópias de todos os elementos, mas somente um direito de os examinar e, depois, de obter cópia daqueles cuja transcrição se pretenda juntar ao processo.

  7. O que foi corroborado pelo tribunal a quo; X. Poder-se-ia defender esta posição como um corolário do artigo 86.°, n.º 7, do CPP, na medida em que protegeria a reserva da vida privada.

  8. Porém, este raciocínio não colhe: é que o Arguido requereu, somente, que lhe fossem entregues cópias das intercepções telefónicas feitas às suas próprias comunicações.

  9. Não há, pois, qualquer ameaça à reserva da vida privada.

  10. Nem há qualquer perigo de afectação grave de direitos, liberdades e garantias, pois que, a ser assim, os respectivos suportes técnicos já teriam sido mandados destruir, nos termos do artigo 188.°, n.º 6, al. c), do CPP.

  11. Sucede, além do mais, que esta decisão contende frontalmente com a já citada disposição do artigo 86.°, pois que foi recusada a entrega de todas as cópias de escutas telefónicas requeridas, inclusivamente aquelas que já se encontram transcritas por ordem do MP - e que, portanto, valerão como meio de prova em julgamento.

  12. Assim, pelo menos neste ponto não poderá deixar de ser revertida a decisão recorrida.

  13. É verdade que o pedido feito pelo Arguido era mais abrangente, referindo-se explicitamente a todas as intercepções telefónicas que tivessem por alvo o seu telemóvel- o que é natural, visto que qualquer uma delas é um potencial meio de prova que o Arguido tem o direito de examinar atempadamente.

  14. Poder-se-ia então argumentar que o direito de exame dos autos na secretaria, feito nos termos do artigo 188.º, n.º 8, do CPP, assegura devidamente o exercício desse direito.

  15. Mas só com muita ingenuidade se poderia acreditar nas virtudes desta solução, aplicada a este caso, XIX. Na verdade, tal entendimento promove uma assimetria de meios e mina as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido em processo penal.

  16. Sublinhe-se que a especial complexidade deste processo já foi reconhecida e declarada nos presentes autos.

  17. Ela resulta, entre outros factores, da quantidade absolutamente avassaladora de comunicações telefónicas interceptadas, que se espalham por dezenas de volumes de transcrições e outras dezenas de CD's com material fonográfico em bruto, não filtrado nem transcrito.

  18. Neste contexto, não se pode afirmar com seriedade que a mera autorização para exame dos respectivos suportes técnicos na secretaria é garante suficiente do exercício cabal do direito de defesa do Arguido.

  19. Com efeito, tal exame é impossível de ser levado a cabo nestas condições.

  20. Pelo que o indeferimento do pedido do Arguido constitui uma restrição inaceitável do seu direito a exercer de forma plena a 8US defesa.

  21. Tal facto mais grave se torna se tivermos em conta que, devido à estrutura do processo penal português, a acusação não sofre o mesmo tipo de limites que agora são impostos à defesa.

  22. Em particular, deve sublinhar-se que o Ministério Público, ao contrário do arguido, tem acesso a todas as comunicações interceptadas, e tem a oportunidade de as ouvir, filtrar e mandar transcrever, se as considerar relevantes para sustentar a tese que vem a ser vertida no despacho acusatório, durante os vários meses e até anos que dura o inquérito (e não durante os dias em que dura o prazo para requerer a abertura de instrução).

  23. Dai que, uma vez finda a fase de inquérito, seja importante conceder ao arguido, na medida do possível, idênticas oportunidades de exame e uso da prova recolhida.

  24. Isto mesmo foi reconhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão recente que versou sobre uma disputa em tudo semelhante e no qual foi deferido o pedido de entrega da "cópia do CD junto aos autos que contém as gravações áudio das escutas telefónicas efectuadas no decurso da investigação.

  25. Tal raciocínio é o que melhor assegura que o processo penal é justo e equitativo, e que a igualdade de armas tem repercussão efectiva no procedimento, pelo que a decisão recorrida deve ser substituída por uma que reconheça ao Arguido o direito de obter, à sua custa, cópia de todos os suportes técnicos das intercepções telefónicas efectuadas pelas autoridades portuguesas e espanholas envolvendo o seu telemóvel.

  26. Reputando-se inconstitucional a norma do artigo 188.°, n.º 8, do CPP, singularmente considerada ou em conjugação com outras normas, se interpretada nu sentido de limitar o direito do arguido de obter cópia dos suportes técnicos das comunicações interceptadas às partes que pretenda transcrever para juntar ao processo.

  27. Reputando-se inconstitucional a norma do artigo 188.°, n.º 8, do CPP, singularmente considerada, ou em conjugação com outras normas, se interpretada no sentido de, em processo penal cuja especial complexidade já foi declarada nos termos do artigo 215.º, n.º 3, com referência ao art.º 1.º, al, m), ambos do CPP, limitar o direito do arguido de obter cópia dos suportes técnicos das comunicações interceptadas às partes que pretenda transcrever para juntar ao processo.

  28. Reputando-se inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º8, do CPP, singularmente considerada ou em conjugação com outras normas, se interpretada no...

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