Acórdão nº 586/15.5TDLSB-G.L1 -3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 12 de Outubro de 2016

Magistrado ResponsávelCARLOS ALMEIDA
Data da Resolução12 de Outubro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam, em conferência os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.

I–RELATÓRIO: 1–No dia 3 de Junho de 2016, a Sr.ª juíza colocada na ...ª Secção de Instrução Criminal – Juiz ... – da Instância Central de Lisboa da comarca de Lisboa proferiu nestes autos o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve: O arguido E.M.G. veio a fls. 3002 insurgir-se contra a manutenção da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, requerendo a sua imediata revogação e a declaração de invalidade de todos os actos praticados no inquérito.

Fundamenta o requerido em duas ordens de razões: a)A descriminalização da conduta que lhe é imputada pelo Ministério Público, alegando que a previsão no artigo 19.º da Lei n.º 22/2013 (Estatuto do Administrador Judicial) de contra-ordenações pela violação dos deveres a que se encontram adstritos os Administradores de Insolvência, demonstra que o legislador pretendeu apenas sancionar a mesma como ilícito contraordenacional e não como ilícito penal; b)A natureza exclusivamente privada da actividade do Administrador de Insolvência, o qual não integra o conceito de funcionário para os efeitos do artigo 386.º do Código Penal.

O Ministério Público deduziu oposição ao requerido a fls. 3017, alegando que a pretensão do arguido não tem fundamento legal ou acolhimento jurisprudencial, cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que constam de fls. 3019 e seg..

Quanto à alegada descriminalização da conduta do Administrador de Insolvência que utiliza em proveito próprio, para os fins que entende pertinentes e que em exclusivo o beneficiam, o património das sociedades sob a sua gestão, a mesma não tem qualquer fundamento na Lei Penal ou no Estatuto do Administrador de Insolvência.

É certo que a conduta do arguido, porque privou as sociedades por si administradas de valores destinados à sua recuperação ou ao ressarcimento dos seus credores, viola o dever constante do artigo 12.º, n.º 2, do EAJ, mas esta determinação não significa que o legislador pretendeu isentar o Administrador Judicial, que actue nos mesmos termos indiciados quanto ao ora arguido, de responsabilidade penal.

São aliás inúmeros os exemplos no ordenamento jurídico em que a responsabilidade contra-ordenacional e criminal se apresentam numa relação de concurso, designadamente no Direito Estradal, quando a prática de uma contra-ordenação prevista no Código da Estrada é causal de um crime rodoviário e no Direito dos Valores Mobiliários, quando a prática de uma contra-ordenação prevista no CVM integra simultaneamente o tipo objectivo dos crimes previstos nos artigos 378.º e seg. do CVM.

Para tal relação de concurso o legislador previu expressamente uma solução que, como refere o Ministério Público, se encontra prevista no artigo 20.º do DL 433/82, de 27.10, ou seja, o facto ilícito será sempre punido como crime.

Tal é justamente a situação dos presentes autos em que se verifica uma relação de concurso aparente entre contra-ordenação prevista no EAJ e ilícito penal, que corresponderá ao previsto rio artigo 375.º do Código Penal, devendo o arguido ser punido apenas no âmbito desta norma.

Vem ainda o arguido alegar que, caso se considere a sua conduta ilícito penal, não pode ser punido no âmbito do artigo 375.º do Código Penal porquanto não é funcionário para os efeitos do artigo 386.º do Código Penal.

Nesta parte, igualmente considero que a sua alegação não tem qualquer fundamento e que a qualificação do Administrador de Insolvência como funcionário nos termos do artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal possui sólido suporte legal e jurisprudencial.

Os elementos típicos do crime de peculato, p. p. no artigo 375.º do Código Penal, correspondem a: a)Que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386.º do Código Penal; b)Que tenha a posse do bem (dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções; c)Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”.

d)Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.

A consumação ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente[1].

Este crime tutela, por um lado, bens jurídicos patrimoniais e, por outro, a probidade e fidelidade dos funcionários.

O conceito de funcionário para o preenchimento do elemento objectivo do crime de peculato encontra-se definido pelo artigo 386.º do Código Penal, tratando-se de um conceito amplo, que difere do conceito de funcionário para efeitos administrativos mas que, para o que ao caso importa, exige que o agente tenha “sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou Jurisdicional”.

Em tal conceito integra-se indubitavelmente o Administrador de Insolvência, que tal como os Funcionários Judiciais e Magistrados é um servidor da Justiça e do Direito, artigo 12.º, n.º 1, do EJN, que actua como “pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos actos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência”, artigo 2.º, n.º 1, do EAJ.

Deste modo, concluímos, tal como nos Acórdãos de citados a fls. 3019 e seg., que o Administrador de Insolvência é funcionário para os efeitos do artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, dado que o conceito de funcionário, para o Direito Penal, integra “qualquer actividade realizada com fins próprios do Estado e a actividade relacionada com a liquidação de patrimónios em processo de falência ou a venda em acção executiva é fim próprio do Estado levada a efeitos através do órgão de soberania Tribunais”[2].

Mais se salienta que no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que apreciou a aplicação ao arguido da medida de coacção prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal, mais uma vez, a 2.ª Instância não teve quaisquer dúvidas em assim considerar e em salientar a gravidade da conduta do arguido, indiciado, para além do mais, pela prática de crime de peculato, punível com pena de prisão até 8 anos e em concluir pela correcta aplicação daquela medida de coacção privativa da liberdade, mas inteiramente proporcional à gravidade dos factos e à sanção previsivelmente a aplicar em julgamento.

Assim, integrando o arguido, na qualidade de Administrador de Insolvência, o conceito de funcionário e resultando fortemente indiciados os demais elementos típicos do crime, em especial, o uso abusivo, em proveito próprio, de património que lhe estava confiado judicialmente no exercício daquelas funções, deve concluir-se que se mantêm os pressupostos de Direito que determinaram a aplicação ao arguido de medida de coacção privativa da liberdade, improcedendo o alegado a fls. 3002 e seg..

* Atendendo ao facto de o arguido já se ter pronunciado quanto à manutenção da medida de coacção, não se considera necessário proceder à sua audição para os efeitos do artigo 213.º, n.º 3, Código de Processo Penal.

* E.M.G. encontra-se sujeito a medidas de coacção privativas da liberdade desde 4.12.2015 e por se encontrar indiciada nos autos a prática por este dos crimes de peculato e branqueamento, p. p. nos artigos 375.º e 368.º-A, n.º 1, do Código Penal.

Do exame dos autos resulta manterem-se os indícios da prática pelo arguido dos crimes supra referidos, cujos fundamentos de Direito se encontram supra apreciados, mantendo-se igualmente inalteradas as exigências cautelares, não existindo atenuação de tais exigências, tal como doutamente foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Foi declarada a especial complexidade dos presentes autos.

Não foram ultrapassados os prazos a que alude o artigo 215.º Código de Processo Penal.

Pelo exposto, mantendo-se inalterados os pressupostos de facto e de Direito que determinaram a sujeição do arguido a obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, visto o preceituado no artigo 212.º e segs. do Código de Processo Penal, mantenho a mesma.

Notifique e comunique à DGRSP.

2–O arguido interpôs recurso desse despacho.

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões: A–Descriminalização da conduta do arguido.

I.Vem o presente recurso interposto do despacho do tribunal a quo que indeferiu o requerimento do arguido, ao abrigo disposto no artigo 122.º, n.º 1, 212.º, n.º 1, alíneas a) e b), 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 8, 217.º, n.º 1 e 2, do CPP para imediata extinção/revogação de todas as medidas de coação e declaração de invalidade de todos os atos praticados no inquérito e respetivo arquivamento dos autos, porquanto a matéria de que está indiciada constitui contraordenação e não crime.

II.Porém, o tribunal a quo, embora reconhecendo que a conduta do arguido se subsume ao disposto no artigo 12.º, n.º 2, da Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, invocou, erradamente, o disposto no artigo 20.º do RGCO para concluir que se tratando de um concurso aparente entre contraordenação e crime o arguido deve ser sempre punido a título de crime.

III.Desde logo, o artigo 20.º do RGCO não regula um concurso aparente, mas, ao invés, um concurso (efetivo) ideal heterogéneo, não sendo pois de aplicar aos casos de concurso aparente aos quais, aliás, têm de se aplicar as regras que lhe são próprias. Assim, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.30.2000 e o da Relação do Porto de 19.12.2007, melhor identificados na motivação e doutrina convergente ali citada.

IV.Contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, contraordenação e crime não são a mesma coisa, pois aquela é um aliud em relação a este, ou seja, o ilícito de mera ordenação social é um ramo jurídico autónomo...

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