Acórdão nº 243/13.7ECLSB.L1-5 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 23 de Fevereiro de 2016

Magistrado ResponsávelLU
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam, em conferência na (5.ª) Secção Criminal da Relação de Lisboa: I – Relatório.

I – 1.) Inconformado com o despacho melhor constante de fls. 100 a 106 em que a Mm.ª Juiz da Secção Criminal da Instância Local do Barreiro, rejeitou a acusação deduzida nos autos, por os factos constantes da mesma não integrarem qualquer crime, recorreu o Ministério Público para esta Relação, apresentando as seguintes conclusões: 1.ª - Dispõe o artigo 311º, nº 2, do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».

  1. - A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime».

  2. - O modelo processual penal vigente em Portugal desde 1987 estrutura-se no princípio do acusatório, mitigado pelo principio da acusação, (artigo 2º, n.º 2, ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal) reflectido na clara separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional, com nítida indicação da entidade que tem a seu cargo a fase investigatória eventualmente a culminar numa acusação e da entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto de tal acusação.

  3. - Porém e como se alerta no Acórdão da Relação de Coimbra de 14-04-2010, na vigência da redacção originária do art. 311º do CPP suscitaram-se dúvidas sobre os poderes do juiz de julgamento, no despacho inicial, quando recebe o processo sem que tenha sido requerida a instrução – caso em que o J.I.C. goza de amplos poderes da apreciação dos indícios do crime acusado, mas não pode, por outro lado, intervir na fase de julgamento, quer porque a lei não apresentava qualquer esboço de definição do conceito de manifesta improcedência.

  4. - Com efeito o nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja, o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos – cfr. Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, I, 58.

  5. - Assim, perante as dúvidas e questões de constitucionalidade do preceito, que se vinham suscitando (cfr., em síntese, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed. em anotação ao citado art. 311º) na revisão operada pela Lei 59/98 de 25.08, o legislador tenha sentido a necessidade de aditar ao preceito o actual n.º 3, com a redacção supra reproduzida, que contém, precisamente, a definição do que o legislador considera manifesta improcedência, para efeitos de rejeição da acusação. De que resultou a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal e a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.

  6. - Logo, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência, e definiu-os taxativamente no n.º 3 do art. 311º. “Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.” – Ac. Rel. Coimbra de 25 de Março de 2010.

    Por outro lado, importa considerar que as referidas previsões do n.º 3 do art. 311 têm correspondência nas alíneas do nº 3 do artigo 283º, que definem as nulidades da acusação.

  7. - O art. 283º, nº3 prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.

    O art. 311º, nº 3 prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar só se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].

  8. - Daí que o regime de qualquer outro vício da acusação - previsto no art. 283º ou eventualmente em outras disposições legais - terá que ser procurado, fora da previsão do n.º 2, al. a) do art. 311º, por não coberto nem pela letra nem pelo espírito do referido preceito na perspectiva de inserção no direito de defesa e na estrutura acusatória do processo. - Ac cit de 14-04-2010.

  9. - Assim, o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, ainda que o legislador não o diga de forma expressa, veio a consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.

  10. - Daí que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.

  11. - Decorre da taxatividade legalmente estabelecida, um obstáculo inultrapassável à substituição por outra interpretação que não aquela que o legislador pretendeu.

  12. - Quanto às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e quanto à alínea d) o limite da interpretação do seu conteúdo coincide com o que a estrutura dos princípios processuais admite, a significar que o Tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la quando a factualidade respectiva não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado ou quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento.

  13. - “Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.

  14. - Em conclusão dir-se-á que a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no nº 3 do citado art. 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, 2009, p. 789), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves. (vide, neste sentido, entre outros o Acórdão da Relação de Lisboa de 04/10/2011, proc. 1062/10.8TACSC, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/07/2012, proc. 1087/11.6PCMTS e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/12/2009, proc. 734/07. TAPDL, disponíveis em www.dgsi.pt 16.ª - Ora, in casu, e com o devido respeito por opinião contrária, não é legítimo considerar, de forma inequívoca e incontroversa, que os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público não constituem o crime de Exploração Ilícita de Jogo imputado à arguida.

  15. - Dispõe o art. 108º, nº1 do DL 422/89, de 2/12, na redacção dada pelo DL 10/95: quem, por qualquer forma, fizer exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias».

  16. - Para se poder saber se a matéria de facto assente integra ou não este tipo incriminador, torna-se imprescindível, pelo menos num primeiro momento, procurar determinar o conceito de jogo de fortuna e azar que constitui o objecto da actividade proibida.

  17. - Para tanto, como se salienta no Acórdão da Relação de Lisboa de 26.10.2005, proferido no Rec. n.º 7610/05 – 3.ª Secção, de que é relator o ilustre Desembargador Carlos Almeida, publicado na CJ, ano XXX, tomo IV, pág. 147 e ss, também acessível in www.dgsi.pt, que seguiremos de perto, convém analisar a evolução da legislação em matéria de jogo desde, pelo menos 1969, data da publicação do Decreto-Lei n.º 48 912, de18.3.69, diploma que regulava os jogos de fortuna e azar e as modalidades afins.

  18. - No artigo 1° desse diploma definia-se o jogo de fortuna e azar como aquele «cujos resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte». Por contraposição, as modalidades afins eram definidas como «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte» (artigo 43°).

  19. - Existia, portanto, uma linha clara de distinção entre estes dois conceitos: os resultados dos jogos de fortuna ou azar dependiam exclusivamente da sorte ao passo que...

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