Acórdão nº 5/12.9YXLSB.L1-1 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 20 de Dezembro de 2016

Magistrado ResponsávelMANUEL MARQUES
Data da Resolução20 de Dezembro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório: I.

JOSÉ FERNANDO ... ... ... propôs acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra ... – SERVIÇOS DE ENFERMAGEM AO DOMICILIO, LDA, ambos identificados nos autos, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 10.000,00€, sendo 1.980,49€ a título de prejuízos patrimoniais e o restante danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que em Julho de 2010 contratou os serviços profissionais de enfermagem da Ré, os quais foram prestados no seu domicílio através de várias colaboradoras durante o mês de Julho de 2010 e inícios de Agosto desse ano; que as úlceras de pressão ou escaras de que padecia foram tratadas com pomada halibut e óleo de amêndoas doces, o que se revelou manifestamente desajustado e contribuiu para o agravamento das úlceras de pressão; que esse tratamento é adequado para situações de pele intacta, ou seja, úlceras de grau I e não de grau III, como eram as suas; que a ré vendeu-lhe em 30 de Julho de 2010 um colchão usado por €400,00, o qual não resolveu os seus problemas; que em montantes pagos despendeu a quantia de €1.980,49; que os tratamentos realizados puseram em risco a sua vida, por septicemia; que teve de ser assistido de urgência no Hospital São José, para desbridamento cirúrgico das escaras em Agosto, Setembro e Outubro de 2010; e que a ré violou os deveres profissionais e deontológicos.

A ré contestou por impugnação, argumentando, além do mais, que o Autor já tinha ulceras de pressão nos pés, tendo sido os familiares ensinados sobre a necessidade de alternâncias de decúbitos durante a noite e a necessidade de adopção de posições durante o dia, o que não foi cumprido; e que foram realizados os tratamentos adequados até os serviços terem sido dispensados.

Conclui pela improcedência do pedido.

Foram juntos documentos por ambas as partes.

A fls. 114/118 o autor veio, nos termos do art. 567º do CPC, aceitar especificamente a confissão da ré de diversos factos que enuncia.

Foi proferido despacho saneador com elaboração de despacho destinado à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e os réus foram absolvidos do pedido.

Inconformado, veio o autor interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões: 1ª-A Sentença recorrida é nula, devido ao facto de não ter especificado os principais fundamentos de direito que podiam justificar a decisão. Com efeito, o segundo tema da prova respeitava à análise do in/cumprimento, pela Ré, dos seus deveres profissionais e deontológicos, mas a Sentença recorrida pura e simplesmente omitiu qualquer referência às normas legais relativas à deontologia profissional do enfermeiro. No nosso direito, são essas as normas que fornecem o quadro legal para resolver a questão da responsabilidade civil profissional da Recorrida perante o Recorrente, no âmbito da relação jurídica de prestação de serviços que mantiveram (art. 95º e ss. do EOE); 2ª-A Sentença é também nula, por encerrar uma dupla oposição entre os seus fundamentos e a decisão: (i) quer no que se refere à inexigibilidade de outra conduta, a qual contradiz a insistência numa terapêutica que não estava a dar resultado, reconhecida na Sentença; (ii) quer no que respeita à falta de demonstração do nexo de causalidade entre os tratamentos e o agravamento das lesões, que as próprias datas em que tiveram lugar os desbridamentos cirúrgicos, imediatamente após e no seguimento da cessação dos serviços da Recorrida, comprovam, no plano dos factos, sendo que, segundo um juízo de normalidade, atenta a evidência científica, a aplicação de Halibut pomada e de óleo de amêndoas doces em úlceras de pressão de grau III, porque configura um tratamento manifestamente desadequado e reprovado, é suscetível de produzir um agravamento das lesões e, dessa forma, um resultado que só pode ser corrigido através do desbridamento cirúrgico; 3ª-A responsabilidade civil do médico encontra-se hoje magistralmente tratada no Acórdão do STJ, de 2 de Junho de 2015 (Relo Maria Clara Sottomayor) (Proc. nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1), que a Sentença podia e devia ter considerado, mas não o fez. Nesse seu Acórdão, o STJ concluiu que "o consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica (artigos 5º da CEDHBioMed e 3º, nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem que ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada"; 4ª-Estes ensinamentos aplicam-se igualmente à prestação de serviços de enfermagem, dado que o EOE consagra o direito à autodeterminação do doente, prescrevendo o dever de o enfermeiro respeitar, defender e promover o direito da pessoa ao consentimento informado (art. 105º, b) do EOE). A obtenção do consentimento informado é, portanto, um dever profissional e deontológico do enfermeiro; 5ª-Nem o Recorrente nem a sua Mulher ou o seu Filho alguma vez souberam que estava a ser aplicado um tratamento que beneficiava apenas da experiência empírica de quem o aplicava, que o tinha porventura testado em meio hospitalar, mas que não correspondia à evidência científica disponível, a qual o desaconselhava; 6ª-Tal como resulta da citada jurisprudência do STJ, o consentimento informado é a chave para a correta distribuição do risco entre as partes e, por essa via, para a resolução de casos de responsabilidade civil contratual pela prestação de cuidados de saúde. A matéria foi, aliás, amplamente discutida em sede de julgamento; 7ª-A Sentença recorrida deveria ter conhecido da falta de obtenção pela Recorrida do consentimento informado, elemento decisivo entre os deveres profissionais e deontológicos do enfermeiro e segundo tema da prova nesta ação. Como o não fez, é nula; 8ª-A Sentença desconsiderou factos fundamentais para a boa decisão da causa que foram alegados pela Recorrente e confessados pela Recorrida, pelo que estavam fora da livre apreciação do Tribunal (arts. 465º, nº 2 e 607º, nº 5 do CPC), devendo ter sido dados como provados. Nessa medida, houve um errado julgamento da matéria de facto, que justifica revogação da Sentença; 9ª-Tal sucedeu com a necessária classificação das úlceras de pressão do Recorrente, de acordo com a respetiva escala técnica ou científica, de grau I a grau IV, algo que a Sentença omitiu e é essencial para boa decisão da causa, pois a adequação do tratamento depende da tipologia das úlceras; 10ª-Pelas razões acima mencionadas, o Tribunal deveria ter dado como provado que as duas úlceras de pressão nos calcanhares do Recorrente, aquando da primeira visita da Recorrida, eram de grau III e que as úlceras de pressão no trocânter direito e no sacro eram de grau II; 11ª-O Tribunal deveria igualmente ter dado como assente que, nos dias 24 e 26 de Julho e 3 de Agosto de 2010, o Recorrente estava sentado na cozinha, em sua casa, e com elevação dos membros inferiores; 12ª-E que a Recorrida, por diversas vezes, lhe aconselhou, não apenas sugeriu, a compra à mesma de um colchão anti-escaras, conforme veio a suceder; 13ª-Pelas mesmas razões, de tal ter sido confessado pela Recorrida na sua contestação e especificada mente aceite pelo Recorrente, a Sentença deveria ter considerado provado, diferentemente do que consta do facto provado nº 30, que as Enfermeiras ao serviço da Recorrida foram acompanhadas pela Mulher e/ou pela Empregada e/ou pelo Filho do Recorrente, estando sempre presentes, durante os tratamentos, pelo menos, duas pessoas, e tendo nos dias 15 e 20 de Julho de 2010 estado também presente o Fisioterapeuta do Recorrente; 14ª-A Sentença deveria ter, ainda, dado como provado que, aquando do tratamento realizado pela Recorrida, no dia 1 de Agosto de 2010, o Recorrente já se encontrava no colchão anti-escaras que adquirira à Recorrida; 15ª-Por outro lado, a Sentença recorrida deve ser revogada, porque fez um errado julgamento da matéria de facto, com ofensa das regras da experiência, no que se refere à análise crítica das provas e aos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do Tribunal (art. 607º, nº 4 do CPC). Tal sucedeu, em particular, no que se refere à credibilidade de determinadas Testemunhas e à prova por conhecimento indireto; 16ª-Assim, não deveria ter sido considerado pouco credível, porque exagerado, o depoimento da Sra. Dra. Maria A.B., já que a mesma disse exatamente aquilo que a Sra. O.A.P.G. referiu, no que se refere ao Recorrente ter escaras e feridas em grande número, por todo o corpo; 17ª-Os depoimentos das testemunhas da Recorrida deveriam ter sido submetidos a um crivo apertado, já que as mesmas eram, como a Sentença não deixou de o reconhecer, parte interessada na causa, devido ao seu bom nome profissional, assim como evidenciaram alguma crispação pelo facto de terem sido objeto de participação disciplinar à Ordem dos Enfermeiros; 18ª-Relativamente aos depoimentos das Sras. Enfermeiras Alzira S. e Catarina C. regista-se, com estranheza, o facto de não conhecerem a Coordenadora do Grupo de Trabalho de Feridas e Responsável pelo Gabinete de Gestão de Risco e Qualidade em Enfermagem do Hospital Curry Cabral, onde aquelas afirmaram trabalhar; 19ª-O depoimento da Sra. Enfermeira Maria A.R.F... não merece, segundo uma avaliação crítica, de acordo com as regras da experiência, qualquer credibilidade, pois a mesma foi ao extremo de dizer que voltaria a fazer tudo na mesma; 20ª-No que se refere ao facto provado nº 23, o Tribunal não deveria ter aceitado dá-lo como assente apenas com o conhecimento indireto revelado pelas Enfermeiras da Recorrida, porque a...

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