Acórdão nº 2931/16.7T9LSB.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 08 de Março de 2018

Magistrado ResponsávelALMEIDA CABRAL
Data da Resolução08 de Março de 2018
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1– No Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 5, Processo Comum Singular n.º 2931/16.7T9LSB, onde são arguidos A…, Unipessoal Ld.ª e B…, foram estes julgados e condenados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. p. nos termos dos artºs. 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, todos do RGIT, nas penas de, respectivamente, 240 dias de multa, à taxa diária de 7,00 €uros e 120 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €uros.

O Instituto da Segurança Social, IP., por sua vez, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, pedindo a condenação destes no pagamento do montante de 35.329,74 €uros, acrescido dos respectivos juros.

Todavia, julgando procedente o referido pedido, apenas no pagamento da indemnização foi condenada a arguida B…, pois que, relativamente à sociedade arguida A…, tendo sido, entretanto, proferida sentença, já transitada em julgado, a declarar a sua insolvência, foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277.º, al. e) do C.P.C., ex vi art.º 4.º do C.P.P.

Porém, com a decisão proferida pelo tribunal “a quo”, na parte em que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, não se conformou o Instituto da Segurança Social, pelo que da mesma interpôs o presente recurso, o qual sustenta no facto de, também em relação à sociedade arguida, dever ser proferida a respectiva decisão condenatória, pois que, pese embora a autonomia material entre a causa crime e a cível, o tratamento formal unitário justifica-se, do mesmo modo que entende dever ser absolvida do pagamento das respectivas custas.

Da respectiva motivação extraiu o recorrente as seguintes conclusões: “(...) 1.°- O objeto do recurso prende-se com a seguinte questão: A Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” ter julgado extinto o pedido de indemnização civil deduzido contra a demandada A…, Unipessoal, Lda. por entender que transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a ação que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a insolvente, deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.°, alínea e), do Código de Processo Civil e pelo facto de ter condenado o ISS, IP no pagamento das custas civis, na proporção do decaimento.

  1. - Ora, salvo o devido respeito pelo entendimento sufragado pela decisão recorrida, entendemos que o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação da lei substantiva e processual aplicável ao caso em apreço e incorreu em manifesto erro de apreciação.

  2. - Cumpre então saber se o pedido cível em processo penal é absolutamente equiparável a uma acção declarativa, o que, a verificar-se, envolveria a obrigatoriedade do reconhecimento do crédito se processar no processo de insolvência.

  3. - No caso, a parte demandante civil surge no processo penal por força do princípio da adesão (art.° 71.° do Código de Processo Penal), uma vez que o lesado só pode fazer valer os seus direitos, em separado perante o tribunal civil, nas situações - excepcionais - previstas no art. 72.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

  4. - No caso de indemnização fundada na prática de crime, o lesado não é livre de optar pela jurisdição e processo civis, mesmo que considere serem os que melhor servem o seu direito. Acha-se obrigado à disciplina do processo penal e a aceitar o desvio às regras gerais da competência do juiz penal, que pode, então, conhecer também da causa cível.

  5. - A causa crime e a causa cível mantêm alguma autonomia material, que não se elimina por terem de ser conhecidas e tratadas num mesmo processo. Este tratamento formal unitário deve-se a razões de economia de meios e de esforços, e serve ainda a uniformização de decisões sobre uma mesma questão de facto. Mas justifica-se também pela especial conexão, ou precisando, pela peculiar conjugação da matéria penal com a matéria cível, que leva a parte penal a influir na decisão cível.

  6. - Pense-se, por exemplo, na determinação da matéria de facto que realiza o “facto (penalmente) ilícito” (no processo penal, obtida à luz de princípios de prova que inexistem no processo civil), na relevância de determinados elementos penalmente típicos (como o dolo penal e o seu grau de intensidade) na quantificação da indemnização, entre outros. Tudo itens a apurar em processo‑crime, de acordo com as regras e princípios do processo penal, e que vão integrar também a decisão em matéria cível.

  7. - De tudo resulta que a conexão obrigatória não tem um fundamento exclusivamente formal, antes se justificando, igualmente, por razões materiais.

  8. - As regras processuais penais impõem-se então na tramitação do processo conjunto - sendo a acção cível que é recebida no processo penal e não o inverso -, o que sucede por razões decorrentes do estatuto de demandado/arguido, do exercício e reconhecimento das garantias de defesa, das diferenças existentes nos direitos probatórios penal e civil, particularmente nos princípios de prova na vertente da apreciação (in dúbio pro reo, presunção de inocência, inexistência de repartição de ónus de prova).

  9. - Assim, as nuances processuais no conhecimento da causa cível enxertada justificam-se na medida em que a forma civil se deve compatibilizar, respeitando-o, com o estatuto do demandado que é também arguido. Simultaneamente, cumpre garantir ao lesado a tutela dos seus direitos - tutela que obteria através do recurso ao processo civil - pois o art. 20.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa assegura a todos o acesso ao direito e garante-lhes o recurso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.

  10. - O objecto da causa cível fundada na prática do crime é, desde logo, o facto ilícito (ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente). A responsabilidade civil por facto ilícito não pode deixar de incluir o conhecimento - de facto e de direito - de todos os pressupostos da responsabilidade civil, o que implica o conhecimento do facto ilícito que constitui, aqui, também um crime.

  11. - O lesado civil tem direito - constitucionalmente assegurado, repete-se -, a ver a sua pretensão apreciada por um tribunal - a totalidade da sua pretensão e não apenas parte dela. A decisão sobre a responsabilidade civil não assenta somente no reconhecimento da existência de danos e do seu quantum. Ao lesado civil tem de ser processualmente assegurada a ampla discussão de toda a matéria (factual e jurídica) relevante para decisão cível, particularmente a causa de pedir do pedido que formula. Sendo ainda certo que, no processo penal e na maioria dos casos, lhe bastará alegar e provar os danos, o que se deve à possibilidade de aproveitamento de uma actividade probatória desenvolvida pelo Ministério Público, justificativa da própria figura da adesão obrigatória.

  12. - Existem, pois, razões de ordem material que fundamentam a conexão e a adesão obrigatória, não existindo outras que, no reverso, impeçam a dedução do pedido cível contra arguido insolvente, em processo penal.

  13. - Esta solução também em nada colide com a natureza e o fundamento do próprio processo de insolvência, como processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

  14. - Na verdade, o demandante-credor sempre terá de vir a reclamar o seu crédito no processo de insolvência, o que garantirá a salvaguarda da igualdade de oportunidade de todos os credores perante uma insuficiência de património do devedor.

  15. - Assim, identificam-se na causa penal razões materiais que justificam a conexão obrigatória - que a justificam materialmente, não apenas formalmente, insiste-se - e o consequente conhecimento da causa cível no processo penal, nos casos de responsabilidade civil emergente de crime.

  16. - A única questão sobrante é a de saber se esta posição, que se adopta, contraria o AUJ n.° 1/2014, que fixou a jurisprudência seguinte: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.° do C.P.C.” (D.R. n.° 39, Série I de 2014 - 02 - 25).

  17. - Este Acórdão mereceu já juízo de constitucionalidade (Ac. Tribunal Constitucional n.° 42/2014, DR 11.02.2014). Estava ali em causa o prosseguimento de acção declarativa tendente ao reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais e direitos indemnizatórios do trabalhador).

  18. - A questão decidenda foi equacionada como sendo a de saber se a sentença transitada, que declara a insolvência da ré-empregadora, determina, ou não, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, de acção declarativa pendente contra a insolvente.

  19. - Ora, o Acórdão não tratou, não aflorou, não analisou e não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime, sendo certo...

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