Acórdão nº 849/13.4TBFIG.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Setembro de 2014

Magistrado ResponsávelTELES PEREIRA
Data da Resolução23 de Setembro de 2014
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1.

A… (A. e Apelante no contexto do presente recurso) demandou na jurisdição comum, correspondente ao Tribunal Judicial da Figueira da Foz, a Sociedade F…, SA (R. e aqui Apelada), enquanto entidade concessionária do estabelecimento de jogo designado “Casino …”, pretendendo haver (ou “reaver”) dessa entidade concessionária, enquanto dano fundado em responsabilidade civil extracontratual, o que perdeu ao jogo nesse casino (€55.360,00), em circunstâncias de tempo e lugar que particulariza no articulado inicial. Com efeito – e a este elemento reporta o dano que invoca –, afirmando-se jogador compulsivo, refere que o acesso em Outubro de 2011 à sala de jogos do referido casino lhe foi facultada pelos empregados da R., não obstante, por iniciativa do próprio A., lhe estar então vedado tal acesso, por despacho do Director do Serviço de Inspecção de Jogos (fundado no artigo 38º, nº 1 do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, v. nota 4, infra).

1.1.

A R. contestou negando, tão-somente, a respectiva obrigação de indemnizar.

1.2.

Saneando o processo, decidiu-se no despacho de fls. 132/136 – constitui este a decisão objecto do presente recurso – ser a jurisdição comum incompetente em razão da matéria, atribuindo-se essa competência à jurisdição administrativa[3]. 1.3.

Inconformado, apelou o A., formulando a rematar a motivação do respectivo recurso as conclusões seguintes: “[…] A - A concessão de serviço público traduz-se na transferência, temporária ou resolúvel, por uma pessoa colectiva de direito público de poderes que lhe competem para outra pessoa, singular ou colectiva, a fim de esta os exercer por sua conta e risco, mas no interesse geral; B – Na acção objecto de decisão de que se recorre com o presente Recurso, o A. não põe em causa tal relação nem esta depende da interpretação do contrato de concessão, da sua validade ou extensão; C - A R. na relação com os clientes não actua investida de jus imperium; D – O pedido do Recorrente baseia-se na responsabilidade extracontratual fundadora de indemnização, a qual não cabe em nenhuma das alíneas do referido artigo 4.º ETAF; E – O Tribunal a quo é o territorialmente competente (competência material) para julgar a lide.

F - O Tribunal a quo fez assim errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 211.º e 212 da CRP; 1.º e 4.º, n.º 1, alínea i) do ETAF; Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, 64.º, 278.º n.º 1, alínea a), 577.º, alínea a) do CPC.

[…]”.

II – Fundamentação 2.

Caracterizado o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso, importa apreciar a impugnação do Apelante, sendo que o âmbito objectivo desta foi delimitado pelas conclusões transcritas no item 1.3. antecedente [artigos 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)[4]]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

2.1.

Discute-se aqui – e constitui o único fundamento do recurso – a competência material da jurisdição comum (artigo 64º do CPC), aquela em que a acção foi proposta e que aqui é protagonizada pelo Tribunal Judicial da Figueira da Foz, face à jurisdição administrativa, tratando-se de julgar, como aqui pretende o A., nos termos que emergem do articulado inicial, uma acção visando uma imputação delitual por omissão, nos termos do artigo 486º do Código Civil (responsabilidade civil extracontratual), dirigida a uma sociedade concessionária de jogo de fortuna ou azar realizado em casino. Funda-se essa pretendida responsabilização, como acima a caracterizámos, na circunstância de não ter sido vedada ao A. (que se afirma jogador compulsivo) a entrada num casino[5] concessionado à R., sendo que, jogando nesse local – rectius, não lhe tendo sido vedada a entrada pela entidade concessionária –, sofreu o A. o “dano” correspondente – é a caracterização e a avaliação que dele faz – à perda que suportou ao jogo nessas condições (€55.360,00)[6].

Na apreciação do recurso – na determinação da questão de competência material que se coloca – são operantes as circunstâncias processuais descritas ao longo do item 1. deste Acórdão, sendo que todas elas estão documentadas nos autos, tanto no seu suporte electrónico como físico (referimo-nos ao processo em suporte de papel).

2.2.

O ponto de partida que se nos afigura mais adequado na procura de uma resposta à questão de competência material, para uma acção de efectivação de responsabilidade civil extracontratual de uma entidade concessionária de jogo, em termos de alocação desta competência à jurisdição comum, como pretende o Apelante, ou à jurisdição administrativa, como entendeu a decisão recorrida, o ponto de partida mais adequado a esta indagação, dizíamos, assenta na referenciação legal do estatuto da actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar como reservada ao Estado, que a concessiona a particulares. É o que expressivamente resulta do disposto no artigo 9º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, a chamada Lei do Jogo: Artigo 9º Regime de concessão O direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado e só pode ser exercido por empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas a quem o Governo adjudicar a respectiva concessão mediante contrato administrativo, salvo os casos previstos no n.º 2 do artigo 6.º.

Esta reserva pelo Estado, que corresponde a um direito exclusivo, com a consequente subtracção originária da exploração dessa actividade por particulares, é completada com a indicação de que o respectivo exercício por estes depende de concessão do detentor originário, o Estado. Assim, os particulares não podem, sem ser mediante concessão pública explorar essa actividade por sua iniciativa (é óbvio que não se trata neste caso de um mero licenciamento de uma actividade). É este o verdadeiro sentido da reserva estabelecida no referido artigo 9º.

Porque se trata o jogo de uma actividade ancestral com características muito peculiares, relativamente à qual se evoluiu, em termos de aproximação jurídica e de enquadramento público, de uma base proibicionista[7] para uma base de aceitação que, de alguma forma, se situa num limiar que poderíamos qualificar como correspondente a uma tolerância activa (isto se quisermos transmitir o verdadeiro sentido da regulamentação pública da actividade de jogo), como actividade monopolizada pelo Estado, só nesse quadro lícita e só acessível a particulares mediante concessão, assentando esta numa regulamentação minuciosa de pendor claramente restritivo. Expressa, pois, tal enquadramento, uma ideia de “rendição” a uma evidência incontornável (à força de “um fenómeno humano”, diz-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 22/85, de 17 de Janeiro). Como sugestivamente refere o Parecer da PGR indicado na nota 7: “[o] Estado acabaria por render-se à evidência incontornável de que o jogo existia, se praticava na clandestinidade e, por isso, viria a regulamentá-lo oficialmente […]”. Isto para além – e também a essa realidade o Estado se terá “rendido” – das receitas propiciadas pelo enquadramento fiscal da actividade de jogo, e demais externalidades económicas positivas que à sua exploração, com enquadramento público, vêm associadas (caso do turismo e do afluxo de capitais)[8].

À questão da reserva pública, que assumirá um papel central na economia decisória deste Acórdão, aparece associada a questão da concessão da actividade de jogo a particulares, sendo que estes, ao receberem essa concessão – ao receberem por via contratual a autorização para explorarem comercialmente essa actividade em determinadas condições –, são activamente associados, e efectivamente vinculados, à prossecução de um conjunto muito expressivo de regulamentações, ligadas a uma forte presença de vectores de interesse público associados à actividade.

Assim é, com efeito, por via da exploração da essência significativa da figura da concessão em Direito Administrativo, na sua forte e sugestiva proximidade à figura da delegação de poderes, relativamente à qual apresenta, todavia, diferenças que são relevantes, como sublinha Marcelo Rebelo de Sousa caracterizando em paralelo as figuras da delegação de poderes e da concessão: “[…] [P]róximas da delegação de poderes são a delegação de serviços e a concessão, respectivamente noutra pessoa colectiva pública e em pessoa colectiva privada não lucrativa, ou em pessoa colectiva privada lucrativa.

De semelhante com a delegação de poderes verifica-se uma transferência com reflexo na competência dos órgãos, efectuada com base na lei, e que supõe um acto do delegante ou concedente.

De diverso deve apontar-se que este acto pode ser unilateral ou bilateral (contrato), ao passo que, na delegação de poderes, é sempre só unilateral e que, na delegação de serviços e na concessão, não se assiste a uma mera transferência de competência mas de atribuições a cargo de uma pessoa colectiva pública.

[…]”[9].

E acrescenta o mesmo Autor, referindo-se à tese que perfilha, quanto à natureza jurídica da delegação de poderes (que qualifica como a tese da transferência de titularidade ou de gozo de parte das faculdades contidas na competência), com grande paralelismo nas situações de concessão: “[…] [E]ntendemos que é compatível com o regime legal o considerar-se que a lei de habilitação só confere competência ao delegante e não ao...

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