Acórdão nº 1033/13.2TBFIG-B.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 16 de Junho de 2015

Magistrado ResponsávelBARATEIRO MARTINS
Data da Resolução16 de Junho de 2015
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação A..., Lda.

, com sede na Rua R..., Figueira da J... – veio a interessada B... & Filho, Lda.

, requerer (ex vi 188.º/1 do CIRE) a qualificação da insolvência como culposa, alegando, em síntese, que a insolvente, apesar de ter cessado a sua actividade no plano fiscal, continuou a exercer a mesma actividade, com a mesma estrutura material e humana, através de uma outra sociedade, denominada L..., Lda., que passou a usufruir da clientela e dos meios materiais da insolvente e cujo capital social foi subscrito pelos filhos do gerente da insolvente e é gerida de facto por este; mais referiu que o gerente da insolvente fez sair do imobilizado da empresa três veículos e que na contabilidade da empresa existia um saldo de caixa no valor de € 119.070,76 que o gerente da insolvente invocou ter levantado para liquidar montante por si adiantado; concluindo que a insolvência deve ser qualificada como culposa por estarem verificadas as situações previstas nas alíneas a), b), d), f), g) e h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

* Em seguida, a Administradora da Insolvência propôs, no parecer que apresentou (nos termos do art. 188.º/2, do CIRE), que a insolvência seja qualificada como culposa, afectando a qualificação o sócio e gerente C... ; para o que invocou, em resumo e identicamente, que o estabelecimento de talho da insolvente está a laborar, sob a mesma denominação comercial e com trabalhadores que eram da insolvente, através da sociedade L..., Lda., cujo gerente de facto é o administrador da insolvente e que se apropriou do activo fixo tangível e do activo fixo intangível da insolvente; e que a devedora alienou parte considerável do seu activo, nomeadamente veículos, não tendo o saldo da caixa sido devolvido à administradora; concluindo que o gerente da insolvente fez desaparecer parte considerável do seu património, dispôs de bens da devedora em proveito de terceiros (veículos e activo fixo tangível e intangível) e prosseguiu no seu interesse pessoal uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, assim preenchendo as previsões das alíneas a), b), d), f), e) e g) do art. 186.º, n.º 2, do CIRE.

* Após o que se pronunciou o Ministério Público (art. 188.º/3 do CIRE) no mesmo sentido e aderindo ao parecer da administradora da insolvência.

* A devedora/insolvente A... , Lda.

e o requerido C... vieram então apresentar oposição, na qual, em súmula, negam a factualidade alegada pela credora e pela administradora e alegam que a insolvência resultou antes do facto de um dos trabalhadores mais antigos da insolvente ter criado uma sociedade e passado a explorar um estabelecimento de talho perto do estabelecimento da insolvente, conseguindo desviar a grande maioria dos clientes habituais e deixando a insolvente com um valor de aviamento praticamente nulo; refutam a existência de qualquer confusão entre a insolvente e a L..., Lda., embora admitam que foi criada pela filha do gerente da insolvente, no local onde se situava o estabelecimento da insolvente e onde o gerente desta trabalha porque a filha o ajudou; referem que os veículos foram pagos e alienados na convicção das condições e preço serem as melhores soluções para a sociedade insolvente e seus credores; dizem que o saldo de caixa é um saldo contabilístico motivado pela não inclusão na contabilidade das devoluções dos suprimentos efectuados pelo C... ; e concluem que o gerente da insolvente agiu com todo o zelo, empenho e ponderação dos interesses dos credores, devendo o incidente de qualificação da insolvência ser julgado improcedente e, em consequência, a insolvência declarada como fortuita.

* A administradora da insolvência respondeu à oposição deduzida, reiterando os termos do seu parecer e refutando as alegações produzidas pela devedora/insolvente e afectado/requerido.

* Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Após o que, instruído o processo e realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, concluindo a sua decisão do seguinte modo: “ (…) Pelo exposto, decide-se: Qualificar como culposa a insolvência de A... , Lda.; Julgar afectado pela qualificação o gerente C... ; Declarar C... inibido para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, e inibido, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido C... , e condená-lo na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; Condenar o requerido C... a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças do respectivo património; (…) ” Inconformados com tal decisão, interpuseram a devedora/insolvente e o requerido C... – afectado pela qualificação da insolvência como culposa – o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que não qualifique a insolvência como culposa e que assim não o afecte. Terminaram a sua alegação com conclusões que aqui não transcrevemos atenta sua redundância e extensão[1].

A Administradora de Insolvência e o Ministério Público apresentaram resposta, defendendo a improcedência do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

* II – “Reapreciação” da decisão de facto Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; sucedendo, porém, que há partes significativas da gravação que se mostram deficientes.

Efectivamente, diversos depoimentos – principalmente, o da Administradora de Insolvência e o do requerido C... – são entrecortados por sucessivos silvos e ruídos estridentes que não permitem compreender completamente tudo o que é perguntado e respondido.

Em face disto, sendo-se rigoroso, pode afirmar-se que não constam do processo todos os elementos probatórios com que a 1.ª instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto e, em consequência, não tendo a deficiência da gravação sido invocada nos termos e prazo constantes do art.144.º/5 do CPC, rejeitar as questões respeitantes à reapreciação/impugnação da decisão de facto.

Outra solução, menos “radical”, é a de ir, na reapreciação da decisão de facto, até onde os elementos probatórios disponíveis/compreensíveis permitem um escrutínio seguro da decisão de facto.

É isto que entendemos dever fazer; tanto mais que – tendo presente as posições assumidas nos articulados, analisados os documentos juntos e ouvido o registo, na parte compreensível, da sessão de julgamento – é manifesto, antecipando a conclusão, que não assiste ponta de razão aos apelantes (na impugnação da decisão de facto), ou seja, apontando todos os elementos disponíveis/compreensíveis no sentido oposto ao da impugnação dos apelantes, não deve tal (por razões formais conduzirem ao mesmo desfecho) deixar de ser aqui afirmado.

Efectuado tal prévio esclarecimento, debrucemo-nos sobre o âmago da questão/impugnação de facto.

É absolutamente claro e indiscutível: Que a devedora/insolvente exerceu a sua actividade de comércio de carnes, talho e salsicharia, entre 1988 e o final do ano de 2011, na Rua da R R..., n.º ...

[2].

E que, a partir do início do ano de 2012, exactamente a mesma actividade de comércio de carnes, talho e salsicharia, passou a ser exercida no mesmo n.º ... da Rua da R R... pela firma L..., Lda., a qual foi constituída e teve como sócios fundadores os 2 filhos – F... e G... , ambos estudantes – dos 2 sócios (marido e mulher) da devedora/insolvente.

Estes factos, juntos à circunstância da apresentação à insolvência por parte da devedora/insolvente ter ocorrido 15 meses depois (em 23/04/2013), com um passivo de € 418.736,87[3] e “sem bens que se vissem” (mais exactamente, com bens apreensíveis no valor de cerca de € 1.500,00[4]), são, só por si, examinados com meridiana perspicácia, indicadores de que algo menos íntegro e leal se pode ter passado.

E é justamente isto – que tais factos indicam e denunciam – que todos os restantes factos e elementos probatórios confirmam e corroboram à saciedade.

Repare-se: A L... não se limitou a passar a explorar o comércio de carnes (talho) no mesmo local em que a devedora/insolvente exerceu a mesma e idêntica actividade durante 23 anos; além disso, passou a utilizar estrutura material e o mesmo nome/denominação comercial – “ N...” – que antes eram usados pela devedora/insolvente[5].

Mais, quem está, no dia-a-dia, no estabelecimento da L... é o requerido C...

[6], assim como empregados que antes ali trabalhavam como empregados da devedora/insolvente[7].

Ou seja, o cliente médio e normal nem se terá dado conta de qualquer alteração no estabelecimento/talho do n.º ... da Rua da R R..., uma vez que tudo – a imagem publicitária exterior, as vitrines, os expositores, os balcões, as pessoas, etc. – terá continuado igual e como era dantes[8], devendo natural e forçosamente concluir-se (como se fez constar do facto 23) que a L... passou a usufruir da clientela da devedora/insolvente.

E é nesta linha de raciocínio que surge – e deve ser interpretada – a transferência da propriedade de todos os veículos automóveis (referidos nos factos provados e não...

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