Acórdão nº 1085/14.8TBCTB-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 10 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelMARIA JO
Data da Resolução10 de Março de 2015
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO J (…) e mulher, E (…), intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra SCUTVIAS – Autoestradas da Beira Interior, S.A.

, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 1.687,07, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos respetivos juros de mora, com fundamento na ocorrência de um acidente de viação do qual terão resultado danos na viatura automóvel propriedade dos Autores e que terá originado a privação de uso do veículo e danos não patrimoniais na Autora, derivados do embate num animal que se encontrava na via, imputando a responsabilidade do mesmo à ré por atos e omissões decorrentes da sua atividade enquanto concessionária da A23.

A Ré apresentou contestação, invocando, além do mais, a incompetência material do tribunal, porquanto a competência para apreciação do presente litígio pertence a um Tribunal de jurisdição Administrativa, pelo facto de estar perante uma relação jurídico-administrativa e uma atuação da Ré no âmbito do exercício de funções administrativas ou de poderes/deveres públicos.

Pelo juiz a quo proferido despacho a julgar improcedente a invocada exceção de incompetência material, declarando-se “competente para conhecimento do litígio em causa nos autos”.

Não se conformando com tal despacho, a Ré dele interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui reproduzimos por súmula[1]: (…) Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. (In)Competência material do tribunal.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Competência material para julgar a presente ação: tribunais comuns ou tribunal administrativo.

Com a presente ação pretendem os autores o ressarcimento dos danos por si sofridos com um acidente ocorrido na A23, na sequência do surgimento de um animal na faixa de rodagem, imputando à Ré a violação do dever de vigilância imposto pelo Contrato de Concessão, na qualidade de entidade concessionária da A23.

O tribunal recorrido, seguindo de perto o Acórdão proferido a 24-06-2014 pelo Tribunal da Relação de Coimbra[2], considerou que respondendo a Ré, por força da Base LXXI da Concessão, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das atividades que constituem o objeto da Concessão, o conhecimento da presente ação incumbe aos tribunais comuns, independentemente da posição sobre a natureza contratual ou extracontratual de tal responsabilidade.

Quanto ao Apelante, partindo da natureza extracontratual da responsabilidade civil que os autores pretendem efetivar e da consideração de que o litígio envolve a apreciação do exercício por parte da ré de um poder público, considera ser tal situação subsumível ao disposto no art. 4º, nº1 do ETAF, e do art. 5º, nº1 da Lei nº 62/2007, de 31. 12, que estabelece a aplicação de tal regime “a pessoas coletivas de direito privado por ações ou omissões que adotem no exercício de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

*A questão da determinação do tribunal competente (tribunais comuns ou tribunais administrativos) para apreciar a responsabilidade civil de uma concessionária de autoestradas pelos danos causados aos utentes das mesmas por desrespeito de normas de segurança, está longe de alcançar uma solução pacífica na nossa doutrina e jurisprudência.

Da passagem pelas decisões que têm vindo a ser proferidas pelos nossos tribunais quanto a tal questão, nomeadamente pelo Tribunal de Conflitos, constata-se que, quer os que atribuem tal competência aos tribunais administrativos, atualmente em nítida maioria[3], quer os que a deferem aos tribunais comuns[4], centram a sua discussão na interpretação das disposições conjugadas dos artigos 4º nº1, al. i), do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), e 1º, nº5 da Lei nº 62/2007, de 31 de Dezembro (Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas), convergindo na asserção de que a competência do tribunal administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados estará dependente de a estes lhes ser aplicável (ou não) o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, redefinindo os critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, começa por definir a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, reportando-a aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, aproximando-a, assim, da função jurídico-constitucional que lhe é atribuída pelo artigo 212º nº3 da Constituição.

A primeira delimitação substantiva da justiça administrativa é feita, assim, por recurso à utilização de uma cláusula geral[5].

Na falta de clarificação por parte do legislador sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, José Carlos Vieira de Andrade[6] propõe que se parta do entendimento do conceito constitucional, enquanto “relação jurídica de direito administrativo” – relação jurídica que corresponda ao exercício da função administrativa, entendida em sentido material –, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.

Contudo, a reforma da justiça administrativa – reconhecendo as tendências doutrinárias que vinham admitindo generalizadamente a atribuição aos tribunais administrativos da resolução de conflitos referentes à atividade da administração, ainda que respeitassem a relações ou incluíssem aspetos de direito privado –, como sustenta José Vieira de Andrade, optou por atribuir expressamente aos tribunais administrativos a resolução de conflitos não incluídos na cláusula geral do artigo 212º, nº2 da CRP[7].

O nº1 do artigo 4º do ETAF[8], concretizando o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, procede à enumeração exemplificativa[9] dos litígios abrangidos pela mesma, atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal competência para a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos; i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público; A Constituição da Republica Portuguesa consagra o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, por todas as ações e omissões que lhe sejam imputáveis, sem prejuízo da existência de direito de regresso, quando a lei o preveja, sobre os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes[10].

Uma das novidades do presente regime consistiu no facto de o artigo 4º, nº1º, al. g), do ETAF trazer para a jurisdição administrativa todas as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual, das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante da junção jurisdicional e da função legislativa.

A doutrina[11] tem vindo a entender passar agora a competir à jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que tenham por objeto a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, inclusivamente pelos danos decorrentes da sua atividade de gestão privada – os tribunais administrativos passaram a...

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