Acórdão nº 2051/11.0TBPBL.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 10 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelTELES PEREIRA
Data da Resolução10 de Março de 2015
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1.

O Ministério Público (A. e Apelante neste recurso) intentou acção declarativa de anulação de casamento contra D… e O… (RR.), invocando ter sido simulado o casamento civil contraído por estes em 09/03/2009[1], na Conservatória do Registo Civil de Coimbra (o assento respectivo consta de fls. 8).

No articulado inicial – e centrar-nos-emos neste relato nas incidências em causa quanto ao tema directo do recurso: a legitimidade do Ministério Público para intentar este tipo de acção –, no articulado inicial, dizíamos, logo no proémio, indicou o Ministério Público o seguinte: “[…] O Ministério Público junto deste Tribunal vem, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 1, alíneas a) e p) e 5º, nº 1 do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro[[2]], artigos 1639º e 1640º do Código Civil[[3]] e artigo 81º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro[[4]], intentar […].

[…]”.

Acrescentando o seguinte no final do mesmo articulado, referindo-se à questão da legitimidade activa própria: “[…]23ºOs RR. simularam o casamento entre ambos para assim poderem iludir o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a 2ª R. obter a correspondente autorização de residência.

24ºOs RR., ao agirem da forma descrita lesaram os interesses do Estado português, defraudando a expectativa comunitária na verdade das relações jurídicas.

25ºPelo que o Ministério Público, enquanto representante dos interesses do Estado, detém legitimidade para intentar a presente acção, atendendo ao disposto no artigo 1640º, nº 1 do Código Civil, que confere legitimidade processual a quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento.

[…]”.

1.1.

Nenhum dos RR. contestou (a R., aliás, foi citada editalmente), sendo o processo saneado tabelionicamente a fls. 350 – “[a]s partes são legítimas”, foi tão-somente o que a respeito da legitimidade aí se disse –, prosseguindo para julgamento com fixação dos temas de prova referidos à pretensão anulatória do casamento formulada pelo Ministério Público.

1.2.

Realizou-se o julgamento, com produção de prova testemunhal, a culminar o qual foi proferida a Sentença de fls. 396/404 – esta corresponde à decisão objecto do presente recurso – absolvendo os RR. da instância, por considerar o Ministério Público desprovido de legitimidade para propor acções de anulação de casamento baseadas em simulação.

1.3.

Inconformado, apelou o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões a rematar a motivação do recurso: “[…] II – Fundamentação 2.

Caracterizámos sucintamente o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso. Importa agora apreciar a impugnação do Apelante, sendo que o âmbito objectivo desta se mostra delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente [v., a propósito da referenciação dos fundamentos do recurso às conclusões, os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código Processo Civil (CPC)]. Assim, fora das conclusões, só podem integrar o objecto temático de um recurso questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição no quadro de um recurso sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação em abstracto do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àquelas (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

Neste caso, o fundamento do recurso – de um fundamento único se trata – corresponde à determinação da legitimidade do Ministério Público para propor uma acção – esta acção – visando a anulação de um casamento com base em simulação, quando esta simulação apresenta determinadas características que adiante particularizaremos.

Adicionalmente – e prosseguimos na senda das considerações preambulares que guiarão o julgamento nesta instância –, obtendo acolhimento a pretensão do recorrente quanto à respectiva legitimidade, haverá que decidir a acção neste Tribunal em substituição da primeira instância, sendo certo que, tendo o julgamento percorrido nesta todas as suas etapas (com produção de prova, discussão da causa e fixação fundamentada dos factos provados[5] e não provados) o recurso assumirá, como é próprio da apelação, natureza substitutória e não cassatória[6], proferindo este Tribunal a decisão da acção, rescindida que seja a Sentença apelada – e sê-lo-á efectivamente, como veremos.

2.1.

Adquire aqui, pois, um particular significado a transcrição do elenco dos factos provados e não provados, sendo que estes, decidida a questão da legitimidade do Ministério Público no sentido do reconhecimento da mesma, propiciarão, concretamente os factos positivamente fixados no Tribunal a quo, o julgamento da acção por esta instância.

Os factos provados são, assim, os seguintes: “[…] 1) No dia 9 de Março de 2009, na Conservatória do Registo Civil de Coimbra, o primeiro R., D…, celebrou casamento civil com a segunda R., O...

2) Os RR. contraíram casamento com o único objetivo de, por esta via, obter a legalização da segunda R., O…, em território português.

3) De tal forma que, apenas alguns dias após o casamento, concretamente no dia 26 de Março 2009, a segunda R. deu entrada do pedido de cartão de residência, invocando esse direito por ser familiar de cidadão nacional, ao abrigo do disposto no art. 15º da Lei 37/2007, de 9 de Agosto, na Delegação Regional de Leiria do SEF.

4) O pedido referido em 3) foi recusado uma vez que os inspectores do SEF suspeitaram da validade do dito casamento.

5) Os RR. nunca efectuaram vida em comum, ou viveram em comunhão de mesa, cama e habitação.

6) Após a celebração do casamento, o R. D… apenas voltou a encontrar a R. O… passados alguns dias, quando a R. O… o procurou dizendo-lhe que tinha de ir ao SEF, responder a umas perguntas cujas respostas escreveu num papel, a fim de que as memorizasse para que pudesse dar as devidas respostas quando indagado sobre tais aspectos da vida de ambos, pelos inspectores do SEF.

7) A partir do momento dito em 6) os RR. não mantiveram qualquer contacto.

8) Na sequência do pedido de residência efectuado pela segunda R., o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras encetou uma série de diligências para aferir da verificação dos pressupostos de facto para a celebração do casamento e consequente autorização de residência.

9) Esta investigação deu origem à instauração do inquérito n.º… com vista ao apuramento da existência de indícios suficientes da prática, pelos ora RR., do crime de casamento de conveniência, previsto no art. 186º da Lei dos Estrangeiros, sendo que, na sequência de acusação aí deduzida, veio a ser proferida sentença, transitada em julgado, na qual o réu foi condenado pela prática de um crime de casamento de conveniência, p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, da Lei 23/2007, de 4 de Julho, na pena de 13 meses de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, fixada em 390 horas.

[…]”.

Os factos considerados não provados – os como tal consignados na Sentença – foram os seguintes: “[…] 1) Os RR. conheceram-se alguns dias antes do casamento, por intermédio de um terceiro indivíduo, de nome S…, que, a pedido da segunda R., abordou o primeiro R., sugerindo-lhe que este contraísse casamento com aquela em troca da quantia de €2500,00, para que esta pudesse obter uma autorização de residência em Portugal.

2) O R. D… referiu não pretender qualquer contrapartida monetária.

3) Quatro dias antes da celebração do casamento os RR. encontraram-se na Conservatória de Registo Civil de Pombal a fim de concretizarem o casamento, o que não veio a suceder por falta do bilhete de identidade do R..

4) Foi nessa data que os RR. se conheceram e estabeleceram contacto directo.

5) Foi a segunda R. quem suportou os custos do processo de concretização do casamento junto da referida Conservatória de Registo Civil de Coimbra.

[…]”.

2.2.

Enunciados os factos e expostas as incidências processuais atinentes ao recurso, importa agora abordar o respectivo tema.

Trata-se de determinar a legitimidade do Ministério Público para intentar uma acção visando a declaração de anulação de um casamento simulado, quando – e este elemento é central na abordagem do caso concreto – essa simulação correspondeu a um “casamento de conveniência”, definido este por referência ao tipo penal do artigo 186º, nº 1 da Lei dos Estrangeiros (a Lei nº 23/2007, de 4 de Julho), quando, portanto – e estamos aqui a parafrasear o tipo penal –, o casamento foi contraído com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um «cartão azul UE» ou de defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição da nacionalidade. Ou seja, um casamento que excluiu a finalidade constante da noção dada no Código Civil (artigo 1577º) – contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do mesmo Código – para se encerrar no exclusivo propósito-outro de obter acesso ao estatuto pessoal propiciador de algum dos elementos descritos no dito artigo 186º, nº 1 da Lei dos Estrangeiros[7]. É assim que um casamento que se esgote neste elemento motivacional, e que ao mesmo tempo exclua qualquer propósito de constituir família (ou algo minimamente aparentado a uma vivência familiar), é anulável por simulação[8]. Aliás, em última análise, poder-se-ia até considerar, quanto a um casamento com estas características, a existência de fraude à lei, no sentido em que a realização do negócio jurídico correspondente ao casamento visaria tão-somente contornar, aparentando-os, os requisitos conducentes à obtenção do estatuto de residente...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT