Acórdão nº 1018/13.9TAGRD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 16 de Dezembro de 2015

Magistrado ResponsávelVASQUES OS
Data da Resolução16 de Dezembro de 2015
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra I. RELATÓRIO No inquérito nº 1018/13.9TAGRD, que corria termos nos Serviços do Ministério Público – Guarda – Procuradoria da Instância Local – 2ª Secção de Inquéritos, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Guarda – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido, A...

, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de uso de documento falso, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), com referência ao art. 255º, a), ambos do C. Penal.

Remetidos os autos à distribuição, o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho: “ (…).

O Tribunal é o competente.

Autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.

* Vista a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos a fls. 75 e 76 contra A... , verifica-se que aí se alega factualmente o seguinte: “No dia 8 de Novembro de 2013, o arguido deu entrada na Delegação Distrital de Viação da Guarda, do requerimento para troca da sua carta de condução Francesa, com o nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Strasbourg, em 9-6-2008, tendo obtido guia de condução portuguesa, tudo conforme se constata dos documentos de fls. 2-18 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. Porém, a carta de condução estrangeira pretendida trocar pelo arguido, conforme se veio a apurar, está inválida, por saldo de pontos nulos, devido a infracções estradais cometidas em território francês, o que era do seu perfeito conhecimento. Agiu o arguido de forme deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que obtinha carta de condução de veículos automóveis portuguesa através do uso de carta de condução francesa inválida, assim visando alcançar para si um benefício ilegítimo à custa do prejuízo do Estado. Bem sabia o arguido que a sua supra descrita conduta era proibida e punida criminalmente.

”.

Com base em tais factos, imputa o Ministério Público ao arguido a prática de um crime de falsificação de documento, p. p., entre o mais, pelo artigo 256º, n.º 1, al. d), do Cód. Penal, ou seja, na modalidade que consiste em “fazer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante”, tudo com a subjacente intenção (neste caso) por parte do arguido em obter para si um benefício ilegítimo.

É certo que o Ministério Público refere um crime de “uso de documento falsificado”, mas não aponta para alínea e) do referido artigo 265º, n.º 1, do Cód. Penal (como assim seria mais de esperar), antes apontando, como se disse, para a respectiva alínea d). Pressupomos portanto que seria a modalidade constante desta última alínea aquela a que o Ministério Público se pretenderia referir, embora sem prejuízo de se poder ter tratado de qualquer eventual lapso e antes se pretender referir a alínea e).

Ora, a respeito da acima aludida alínea d), entende-se então que o preenchimento do respectivo tipo objectivo de crime se verifica com o fazer constar falsamente de um documento um facto que é juridicamente relevante. Não se trata de uma falsificação material do documento, mas sim de uma falsificação ideológica do mesmo, que tem igualmente cabimento no presente tipo de crime. Documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano. Integra o referido tipo legal de crime não só a falsificação material, como também a falsificação ideológica.

Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é antes inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Revertendo ao nosso caso concreto, e nomeadamente aos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público nos autos, verifica-se que nela não se descreve nem se alega sequer que o arguido tenha tido qualquer tipo de intervenção sobre qualquer espécie de documento, ou que nele tenha escrito, assinado ou feito constar o que quer que seja. Apenas se alega, em suma, que o arguido entregou uma carta de condução francesa num determinado serviço público português com vista a que a mesma fosse trocada por uma carta de condução portuguesa, assim obteve uma guia que lhe permitia conduzir em Portugal, e mais tarde veio a apurar-se que a carta de condução francesa entregue pelo arguido não se encontrava válida, por motivos relacionados com o excesso de infracções estradais.

Neste quadro, e perante tal singela imputação factual e objectiva, salvo o devido respeito, não se vê como se possa daí concluir no sentido de que o arguido tenha cometido o crime que lhe veio imputado, ou seja, não se vê como se possa concluir que o arguido tenha feito constar falsamente de qualquer documento ou de qualquer dos seus componentes qualquer facto, quer ele fosse juridicamente relevante quer não.

Por seu turno, mesmo ressalvando o eventual lapso em que o Ministério Público poderá ter incorrido como acima se referiu, mesmo que se pretendesse apontar para a modalidade típica constante da alínea e) do mesmo artigo 256º do Cód. Penal (ao invés da alínea d)), igualmente não vemos que a conduta do arguido pudesse integrar um qualquer uso de um documento...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT