Acórdão nº 2278/11.5TACBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 21 de Junho de 2017

Magistrado ResponsávelPAULO VAL
Data da Resolução21 de Junho de 2017
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

RELATÓRIO 1- Na instância local de Gouveia-Comarca da Guarda, no processo acima referido, foram os arguidos abaixo referidos julgados em processo comum singular, sendo a final proferida a decisão seguinte : - condenado o arguido A...

pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, sob a forma de imprensa, previsto e punido nos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2, 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei n.º 2/99, de 13 de Abril, na pena de 375 (trezentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros); - condenado o arguido C... pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, através de imprensa, previsto e punido nos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2, 184.º, 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, 30.º e 31.º da Lei n.º 2/99, de 13 de Abril, na pena de 375 (trezentos e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros); - condenados os demandados A... e B... no pagamento solidário à demandante da quantia de Euros 875, a título de danos não patrimoniais; - condenados os demandados C... e D... no pagamento solidário à demandante da quantia de Euros 875, a título de danos não patrimoniais.

2- Inconformado, recorreu o arguido A... , concluindo assim: I - A afirmação, constante do nº 5 da relação de factos dados como provados nos autos, de que a matéria averiguada no âmbito do processo disciplinar não pode consubstanciar a prática de qualquer crime de corrupção não constitui um facto, mas sim uma conclusão, que deverá ou não ser retirada dessa matéria alegadamente averiguada no âmbito do processo disciplinar.

II - Deste modo, é patente a existência de uma deficiência na elaboração dos factos dados como provados na douta sentença condenatória, que afecta o suposto facto constante do nº 5 da relação de factos dados como provados.

III - Neste quadro, é manifesto que o suposto facto em causa não pode ser considerado.

IV - Ora, sem ter sido dada como provada a matéria averiguada no processo disciplinar, o arguido e ora recorrente A... não pode ser condenado.

V - Como se verifica pelo teor da notícia, os indícios de corrupção não resultavam apenas do processo disciplinar, mas de outra informação recolhida pelo arguido e ora recorrente A... , na sua qualidade de jornalista.

VI - Por isso, o raciocínio contido na douta sentença condenatória de que realidade e notícia não coincidem por a matéria averiguada no processo disciplinar não se enquadrar no conceito de corrupção está viciada na sua base.

VII - O arguido e ora recorrente A... , ao referir-se aos indícios de corrupção, mencionou expressamente informações prestadas por lesados que não se identificaram, o que bem demonstra que a sua fonte era exterior ao processo de averiguações.

VIII - O arguido e ora recorrente A... não deve ser condenado como se resultasse da notícia que o recebimento de verbas em estabelecimentos e as outras práticas referidas no nº 5 da relação de factos dados como provados na douta sentença condenatória correspondesse (ou correspondesse apenas) ao conteúdo do processo de averiguações referido na notícia.

IX - Como refere J. F. Moreira das Neves, in “A Tutela da Honra Frente à Liberdade de Expressão numa Sociedade Democrática”, Data Venia, Ano 4, nº 5, Janeiro de 2016 (disponível em www.datavenia.pt), (…) nem a Constituição nem a lei estabelecem qualquer subalternização da liberdade de expressão face aos direitos de personalidade, pág. 78.

X - Como expressão da inquestionável importância da evolução da linha jurisprudencial dos tribunais portugueses, no sentido de uma valoração crescente da liberdade de imprensa, seja-nos permitido destacar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Outubro de 2014, relatado pelo Senhor Conselheiro Gregório Silva Jesus (disponível em www.dgsi.pt).

XI - Como se refere no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de verdade noticiosa não tem de coincidir com a verdade absoluta.

XII - No caso dos autos, o arguido e ora recorrente A... , perante a notícia do processo de averiguações e esbarrando no segredo de justiça invocado pelos comandos da GNR, fez precisamente o que podia e devia ter feito: recolher informações e, em face delas, elaborar a notícia, como era do interesse público, dada designadamente a condição dos visados como militares da Guarda Nacional Republicana.

XIII - O citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça contribuiu decisivamente para alinhar a jurisprudência nacional com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, tal como modelarmente se refere no texto da própria decisão: O que se consigna supra, vai, aliás, na linha da jurisprudência do TEDH, no que se reporta em especial à interpretação do art. 10º da CEDH. Como frisado por Henriques Gaspar, “na jurisprudência do TEDH, a liberdade de expressão tem sido considerada como super liberdade e um dos direitos mais preciosos do homem, condição sine qua non de uma verdadeira democracia pluralista, necessária ao desenvolvimento do homem e ao progresso da sociedade: a sociedade democrática repousa precisamente sobre o pluralismo de ideias e opiniões livremente expressas”.

XIV - A ideia de que, num caso como o dos autos, o jornalista se deveria ter limitado a noticiar que decorria um processo de averiguações, calando as informações de que dispunha (e que estavam correctas!), corresponde a uma concepção mais do que retrógrada da liberdade de imprensa, configurando a condenação do arguido e ora recorrente A... , para além de uma injustiça, uma manifestação de profunda e até chocante incompreensão em relação ao relevo social de uma imprensa livre, ao arrepio dos fundamentos básicos do ordenamento jurídico em vigor no nosso país.

XV - As certidões juntas aos autos, relativas aos processos de inquéritos pendentes no então Tribunal Judicial da Comarca de ... , demonstram à saciedade que essas informações estavam correctas e que, portanto, a notícia era verdadeira.

XVI - Custa, por isso, a crer que se tenha chegado na douta sentença condenatória à conclusão de que não existia uma investigação contra a assistente.

XVII - Tendo a assistente sido (como foi!) investigada, forçoso se torna concluir, sem qualquer margem para dúvidas, que a notícia era verdadeira e que o arguido e ora recorrente A... , mesmo sem ter revelado as suas fontes, tinha todos os motivos para tomar como boa a sua informação de que existiam indícios de corrupção, sendo a inexistência da prática de qualquer crime absolutamente flagrante! XVIII - No juízo a que se procede na douta sentença condenatória sobre se os factos investigados se enquadram ou não no conceito de corrupção comete-se o erro de atender exclusivamente ao significado técnico-jurídico do termo corrupção, em detrimento do seu significado corrente, que é, para este efeito, o único que deve relevar.

XIX - Significa isto que, mesmo a matéria constante do processo disciplinar (que versava sobre a acusação feita à assistente de favorecer condutores com alcoolemia, não instaurando os competentes autos de notícia), na medida em que representa um favorecimento a prevaricadores, está claramente abrangida pelo conceito de corrupção em sentido lato, que é o sentido com que, na notícia, o arguido e ora recorrente A... utilizou o termo e o sentido com que seguramente os leitores o entenderam.

XX - Não faz, por isso, qualquer sentido que se diga que a notícia é difamante porque o arguido e ora recorrente A... se referiu a corrupção e não a exercício ilícito de segurança privada.

XXI - O Tribunal a quo deu como provado que o vexame e a ofensa que a assistente sentiu resultaram dos factos noticiados e não da própria notícia em si, ou de qualquer facto da notícia que não fosse verdadeiro.

XXII - Ora, o arguido e ora recorrente A... foi o responsável pela elaboração da notícia, mas não pelos factos noticiados.

XXIII - Por conseguinte, não está feita qualquer prova que permita, ainda que se reconheça a prática de um ilícito criminal (o que só por mera hipótese de raciocínio, e sem conceder, se admite), que o arguido e ora recorrente A... seja condenado no pagamento de uma indemnização cível à assistente.

XXIV - O número de dias de multa é superior ao dobro do limite mínimo da pena, sem que nada o justifique e sem que, nomeadamente, a inexistência de qualquer antecedente criminal do arguido e ora recorrente A... tenha sido devidamente considerada.

XXV - A douta sentença condenatória é, assim, duplamente injusta: ao condenar um arguido inocente e ao aplicar-lhe uma pena concreta de uma severidade absolutamente desajustada ao suposto ilícito que estaria em causa e à personalidade e conduta anteriores do arguido e ora recorrente A... .

XXVI - O arguido e ora recorrente A... deve ser absolvido.

XXVII - Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal...

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