Acórdão nº 46/14.1TAVIS-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 24 de Maio de 2017

Magistrado ResponsávelMARIA JOS
Data da Resolução24 de Maio de 2017
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. No âmbito do PCS n.º 46/14.1TAVIS, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Viseu – JL Criminal – Juiz 2, por despacho de 14.11.2016 foi revogada a pena de 300 horas de trabalho a favor da comunidade, aplicada em substituição da pena de 10 [dez] meses de prisão em que o arguido A... , por sentença transitada em julgado em 09.02.2015, havia sido condenado.

  1. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões: 1. O recorrente foi condenado, em 09-01-2015, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 3 do CP, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade.

  2. Em 14-11-2016, foi proferida douta sentença a revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a ordenar o cumprimento da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada.

  3. Nesta decisão, o Tribunal a quo afastou as previsões das alíneas a) e c) do n.º 2 do art.º 59º do Código Penal por não existir nos autos a notícia de que o arguido tenha praticado crimes e por considerar que o período de doença, por via da sua natureza e na ausência de outros elementos que infirmem o caráter natural (não provocado), afasta a possibilidade de o arguido se ter colocado em condições de não poder trabalhar.

  4. No entanto, acabou por considerar que a conduta do arguido preenchia a previsão típica estabelecida na al. b), do art. 59.º, n.º 2, do Código Penal com fundamento em que a falta de cumprimento da prestação de trabalho no momento posterior ao período de doença, ainda que motivado pelo consumo de estupefacientes, é imputável apenas e só ao arguido: porque o consumo foi um ato de vontade seu; porque só ele, nessa medida, tinha domínio sobre essa decisão, concluindo que esta conduta, apesar de não ser uma recusa direta, não deixa de ser uma expressão da vontade do arguido e, como tal, ato equivalente a essa recusa.

  5. Discordando desta decisão e consequente revogação, interpõe-se o presente recurso, o qual versa sobre a matéria de direito e sobre a matéria de facto em virtude da decisão recorrida não ter atendido ao facto da toxicodependência ser uma doença e, como tal, condicionar as decisões e comportamentos do Recorrente e por não ter atendido também à existência de outros factos provados, constantes da sentença condenatória proferida em 09-01-2015, que conduziriam a uma decisão diversa.

  6. Assim, além dos factos provados e considerados na decisão recorrida, deviam, em nossa opinião, ter sido ponderados também os factos provados na sentença condenatória proferida em 09-01-2015 e na informação constante do Relatório técnico de 19-09-2016, por não ter sido impugnado.

  7. E da conjugação de todos aqueles factos provados, resulta que o Recorrente é consumidor de drogas pesadas, nomeadamente cocaína; há mais de 17 anos; que é acompanhado no Centro de Respostas Integradas (CRI) de Viseu, onde faz tratamento de substituição de metadona; que se encontra em processo de recaída no consumo de estupefacientes; que prevê o seu ingresso numa comunidade terapêutica para tratamento, que esse ingresso está para breve, o qual estava pendente de avaliação para esse eventual encaminhamento.

  8. Sendo esta factualidade provada, deveria o Tribunal a quo Tê-lo considerado e ponderado no sentido de concluir que a toxicodependência do recorrente é uma doença, um estado induzido pelo consumo de cocaína e a abstinência desta substância, como é do senso comum e está cientificamente demonstrado, acarreta distúrbios fisiológicos e psicológicos, ou ambos, que impulsionam o consumidor para a necessidade imperiosa de dispor novamente daquela droga para eliminar os efeitos que a substância produz.

  9. Se a toxicodependência do Recorrente tivesse sido percecionada como uma doença, inclusivamente crónica, porque classificada como tal quer a nível nacional como internacionalmente, o Tribunal a quo teria concluído, por um lado, que o Recorrente não consegue sozinho – sem ajuda de fármacos e de terceiros – curar-se daquela doença (daí o desejo e vontade de entrar numa comunidade terapêutica) e, por outro lado, aceitaria que a tendência para a recidiva na toxicodependência prolongada (como é a do Recorrente) é característica implícita à própria problemática do consumo e decorre do efeito que este produz no organismo.

  10. Consequentemente, não teria concluído como concluiu, que uma nova recidiva no consumo do recorrente lhe é imputável ou que a decisão de consumir se reconduz a um simples ato de expressão de vontade; ou que o arguido quis o consumo e com isso colocou-se numa situação de inexequibilidade da prestação de trabalho; ou que pretendeu, com o consumo, obter a consequência de inexequibilidade.

  11. A atual toxicodependência do Recorrente, após longos 17 anos de consumo de drogas duras, sobretudo de cocaína, não é uma toxicodependência que esteja única e exclusivamente dependente da sua vontade, da sua autodeterminação, mas sim da natureza química da cocaína que ao longo dos anos afetou e modificou a estrutura e o funcionamento do organismo do Recorrente, designadamente ao nível das funções do sistema nervoso, alterando-lhe a consciência, a disposição e os pensamentos.

  12. Reconhecer esses efeitos como consequência normal duma toxicodependência duradoura, como é a do Recorrente, é essencial para compreender que nem sempre a decisão de consumir, ou não consumir, está exclusiva e unicamente na vontade do consumidor.

  13. Foi, aliás, esta ideia de que o toxicodependente deve ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica, atentas as últimas aquisições científicas acerca dos efeitos das drogas na personalidade humana, que determinou uma alteração radical das políticas legislativas nestas matérias, como é devidamente acentuado no preâmbulo do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

  14. Por outro lado, qualquer juízo de censurabilidade que pudéssemos imputar ao aqui Recorrente quanto à sua toxicodependência, ela teria necessariamente de remontar ao início do seu consumo: há 17/18 anos, por ser aí que a sua decisão lhe era integralmente imputável e não, em nossa opinião, quando, volvidos muitos anos, está irremediavelmente mergulhado num vício perene.

  15. Parece-nos, por isso, insustentável afirmar que a decisão de não abstinência ou de não libertação por parte do Recorrente radicou num ato de vontade pessoal deste sem levar em linha de conta os efeitos e todas as considerações médicas conhecidas a esse respeito.

  16. Não o tendo feito, o Tribunal a quo decidiu contra os ensinamentos da ciência médica e as regras da experiência comum, e como tal, padece de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável de fundamentação porque, tendo dado como provada a toxicodependência do Recorrente...

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