Acórdão nº 721/13.8TACLD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 04 de Maio de 2016

Magistrado ResponsávelFERNANDO CHAVES
Data da Resolução04 de Maio de 2016
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I – Relatório 1.

No âmbito do processo comum singular n.º 721/13.8TACLD, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Caldas da Rainha – Instância Local – Secção Criminal – J1, por sentença de 09/11/2015, depositada no mesmo dia, o arguido A..., com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática de um crime de violação de garantias aduaneiras, p. e p. pelo artigo 98.º do RGIT, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 500,00 (quinhentos euros).

  1. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição com renumeração dos artigos): «1) Em primeiro lugar, importa referir que foram indevidamente valoradas as provas constantes dos Documentos 2 e 5 juntos aos autos.

    2) No primeiro caso trata-se de um mandado de detenção para comparência em Tribunal Criminal no qual o arguido é acusado de desviar, em prejuízo de uma instituição de crédito, um veículo que tinha adquirido com uma cláusula de reserva de propriedade.

    3) No segundo caso, trata-se do acordo amigável de restituição do veículo que permitiu a desistência de queixa e subsequente absolvição no processo-crime no qual era arguido perante o tribunal francês.

    4) Ambas as provas esclareciam o Tribunal acerca da gravidade da situação do arguido perante a Justiça Francesa, da urgência de cumprir o dever de restituição do veículo e ainda da anterioridade da obrigação creditícia perante a instituição de crédito francesa relativamente à autuação pelas autoridades alfandegárias portuguesas.

    5) A douta sentença recorrida começou por estabelecer uma distinção entre deveres ou ordens relativos a ações ou omissões, e conflitos entre dever de agir e dever de omitir para concluir que só a primeira situação seria enquadrável no conflito de deveres.

    6) Tal distinção não releva para o caso concreto nem tão pouco tem apoio legal, jurisprudencial ou doutrinário.

    7) A principal razão da existência de um conflito de deveres reside na ausência de uma terceira via, ou seja, uma alternativa ao incumprimento dos deveres em conflito, situação essa que implica que um dos deveres tenha de ser sacrificado.

    8) A douta sentença não justifica nem aponta uma solução alternativa de modo a que o arguido pudesse evitar ser sancionado por qualquer uma das jurisdições que no caso concreto eram conflituantes.

    9) Deste modo, a douta sentença veio indevidamente afastar a aplicação da causa de exclusão da ilicitude contida no artigo 36 nº 1 do CP.

    10) Na realidade, a doutrina a e jurisprudência consideram que o debate se deverá centrar na hierarquização dos deveres conflituantes sempre que, perante um dilema de cumprir com um dever e sacrificar outro, o sujeito processual tenha que tomar uma decisão.

    11) O arguido apercebeu-se que a citação e o mandado judicial emanados do tribunal francês teriam consequências muito mais gravosas em caso de incumprimento.

    12) Deste modo, adotou o critério da prevalência em abstrato do cumprimento do dever perante a jurisdição francesa evitando, desse modo, ficar privado da liberdade no caso de não entregar de imediato a viatura à instituição de crédito.

    13) Por outro lado, se quiséssemos aplicar o critério da anterioridade (aflorado no despacho de pronúncia) ou antiguidade relativa, sempre se diria que a obrigação creditícia do arguido data de 27-12-2005 sendo, portanto, muito anterior à aplicação da multa por contraordenação e subsequente nomeação enquanto fiel depositário da viatura penhorada.

    14) Da mesma forma, face às circunstâncias do caso concreto, não se deverá optar pelo critério da anterioridade da constituição do dever perante a autoridade portuguesa na medida em que a ordem emanada do tribunal francês não só não apresentava alternativa ao arguido como ainda lhe dava muito pouco tempo de resposta.

    15) Não se pode considerar que esteja preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime porque tal implicaria que se provasse que o arguido agiu com uma consciência, mais ou menos leviana, de desobediência às autoridades portuguesas.

    16) É verdade que o arguido tinha a consciência de que estava a sacrificar um dever de obediência a uma autoridade administrativa portuguesa mas as consequências da desobediência à ordem judicial francesa eram muito mais graves e repercutir-se-iam na sua esfera jurídica de imediato.

    17) Não se pode hierarquizar os deveres em conflito apelando a uma preferência perante a ordem jurídica portuguesa em detrimento da ordem jurídica francesa porque estão ambas no mesmo plano.

    18) A resolução do conflito (ou colisão) de deveres sacrificando o dever perante a jurisdição portuguesa e optando pelo dever cujo incumprimento teria consequências mais gravosas opera a causa de exclusão da ilicitude.

    19) Ainda que se possa considerar que ambos os deveres são de igual valor porque nos dois casos teriam consequências penais e, em última análise, o incumprimento de ambos implicaria que o arguido respondesse perante a Justiça, mesmo assim a causa de exclusão da ilicitude contida no artigo 36 nº 1 do CP continuará a operar.

    20) Perante o concurso real de deveres, o arguido resolveu bem o conflito que se lhe deparou, deverá considerar-se como não preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime pelo qual foi condenado e, nessa medida, ser revogada a sentença condenatória substituindo-a por outra que absolva o arguido Com o que se fará Justiça!» 3.

    O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

  2. Nesta Relação, o Ex.

    mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, acompanhando a bem fundamentada resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

  3. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o arguido reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.

  4. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

    * II – FUNDAMENTAÇÃO 1. A sentença recorrida 1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): “Da acusação 1. No dia 14 de Abril de 2010, pelas 12:00 horas, em Caldas da Rainha, foi levantado pela Direcção-Geral as Alfândegas e dos Impostos Especiais Sobre o Consumo o auto de notícia a relatar que o arguido era proprietário do veículo de matrícula (...) AQQ (...) , Peugeot 807, sendo simultaneamente residente e exercendo profissão remunerada em Portugal.

  5. No âmbito deste processo, a correr termos na Alfândega de Peniche, ao ora arguido foi apreendido este mesmo automóvel e foi nomeado fiel depositário do mesmo.

  6. O arguido, que se encontrava presente no acto, foi constituído depositário idóneo do referido bem, que ficou na posse daquele, tendo assinado o auto respectivo e sido advertido que não podia utilizar, modificar, remover, alienar por doação, venda ou qualquer outra forma ou hipotecar, sem autorização da entidade competente da DGAIEC para regularização fiscal, sob pena de incorrer na prática do crime de violação das garantias aduaneiras, se não fizer inteira e completa entrega do mesmo no estado em que o recebeu e no prazo que lhe for designado, função e obrigações de que ficou ciente.

  7. Apesar de saber estar vinculado a estas obrigações, o arguido, em data não concretamente apurada, mas anterior a 16 de Setembro de 2013, fez desaparecer aquele bem.

  8. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, na qualidade de depositário não lhe era permitido dispor daquele bem por qualquer meio, sem que estivesse legalmente autorizado, e desta forma frustrando as garantias aduaneiras.

  9. Não ignorava o carácter censurável da sua conduta e que era proibida e punida por lei penal.

    Da Contestação 7. O arguido já não reside de forma permanente em Portugal desde a insolvência da sua empresa, a qual foi declarada em 2005 no âmbito do Processo 1173/05.1 TBCLD, o qual correu os seus trâmites no extinto 1° Juízo do Tribunal de Caldas da Rainha.

  10. O arguido desloca-se regularmente a Portugal para tratar de assuntos relacionados com a insolvência da empresa da qual foi sócio-gerente.

  11. No decurso destas viagens, o arguido foi fiscalizado e autuado pela mesma infracção no âmbito dos processos de contra-ordenação 433/2008 e 273/2009.

  12. As autuações referidas em 10. respeitavam a circulação do veículo em violação do disposto no artigo 30º do Código do Imposto sobre Veículos, por o arguido constar das base de dados da Autoridade Tributária, como tendo domicílio fiscal em Portugal e sendo sócio-gerente de uma empresa.

  13. O arguido só ocasionalmente reside em Portugal, e nas circunstâncias referidas em 9.

  14. O arguido não pagou a contra-ordenação a que respeita a apreensão do veículo em causa nos presentes autos porque, no seu entender, os funcionários da Alfândega de Peniche estariam a desconsiderar as razões por si anteriormente alegadas quanto à sua permanência em território nacional.

  15. Após ter assinado o documento que o constituía como fiel depositário, datado de 14 de Abril de 2010, o arguido foi citado pelo Tribunal de Grande Instance de Montpellier, no âmbito de processo-crime pelo facto de ser acusado de ter desviado em prejuízo da empresa C (...) um veículo de marca PEUGEOT 807, com a matrícula (...) AQQ (...) .

  16. O processo no âmbito do qual foi efectuada...

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