Acórdão nº 854/13.0TAMAI.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 25 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelMARIA DEOLINDA DION
Data da Resolução25 de Março de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

RECURSO PENAL n.º 854/13.0TAMAI.P1 2ª Secção Criminal Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjunta: Maria Dolores Sousa Processo: Instrução n.º 854/13.0TAMAI/2º Juízo Criminal da Maia Comarca – Porto Matosinhos - Instância Central – 2ª Secção Instrução Criminal-J2 Arguidos B… (recorrente) C… Assistente D… Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO 1.

Nos autos de inquérito n.º 854/13.0TAMAI, da 2ª Secção dos Serviços do Ministério Público da Maia, finda a investigação, foi proferido despacho de arquivamento, de harmonia com o disposto no art. 277º n.º 1, do Cód. Proc. Penal, nos seguintes termos: (transcrição) “Os presentes autos tiveram início com participação de fls. 2 apresentada por D… contra B… e C… onde acusa estes de, na qualidade de sócios da sociedade denominada "E…, Lda.", com sede na Rua …, …., R/C, …, Maia, terem declarado, em 19 de Junho de 2012, que a mesma tinha qualquer activo ou passivo, razão pela qual deliberaram a dissolução daquela sociedade, facto que registaram em 22 de Junho de 2012, quando a mesma sociedade devia a D…, pelo menos, 3.500,00 €, valor referente a rendas em atraso.

Os factos tal como descritos, e em abstracto aferidos, são passíveis de figurar um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256º n.º l, alínea d) do Código Penal.

Deu-se curso ao inquérito.

Foram realizadas as diligências de inquérito que se mostraram necessárias e das mesmas é possível dar como assente a seguinte matéria fáctica: • B… é sócio, desde 19 de Maio de 2000, da sociedade comercial por quotas "E…, Lda.", doravante referenciada apenas por "E…", com sede na Rua …, …., R/C, Moreira, Maia, e C… é igualmente sócio desta sociedade desde 29 de Maio de 2012.

• No dia 1 de Novembro de 2003 foi celebrado contrato de arrendamento comercial entre D… e a E…, representando esta os então sócios gerentes, o aqui arguido B… e C…, de um imóvel sito na Rua …, n.º …., r/c, …, Maia, fixando-se a renda anual de 8.400,00 €, dividida em duodécimos de 700,00 €.

• Aquela sociedade não pagou a renda relativa aos meses de Maio de 2011 até Setembro de 2011.

• Por essa razão foi intentada por D… acção declarativa de condenação, que correu termos sob o número 1503/12.0TBMAI, no 2º juízo de competência cível do Tribunal da Maia, acção essa que foi julgada procedente, e condenou aquela sociedade no pagamento de 8.400,00 € a D…, decisão esta que transitou em julgado em 22 de Janeiro de 2013.

• Em 19 de Junho de 2012, o arguido B… e o arguido C…, na qualidade de sócios da E…, deliberaram a dissolução e liquidação imediata desta sociedade e aí declararam que a mesma não possuía, à data, qualquer activo ou passivo.

• Com base nesta deliberação registaram em 22 de Junho de 2012 a dissolução e encerramento da sociedade E….

Isto posto, cumpre apreciar.

Dispõe o artigo 256º n.º l, alínea d) do Código Penal: "quem com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa".

O bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documento é a fé pública, olhando esta como a confiança exigida no tráfico jurídico negocial. Com este crime o legislador quer tutelar a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita a prova documental. Pretende proteger-se a verdade da prova susceptível de emanar do documento[1].

A falsidade pode ser material ou intelectual.

Na falsidade material o próprio documento é forjado, total ou parcialmente, ou quando se alteram os elementos de um documento já existente.

Na falsidade intelectual, também designada de ideológica, o documento não reproduz aquilo que se destina comprovar - há uma desconformidade entre o declarado e aquilo que consta no próprio documento, sendo este, materialmente genuíno.

No caso da alínea d) do n.º l do artigo 256º do Código Penal, que é situação abstractamente aplicável aos presentes autos, estamos perante a falsidade intelectual.

Aqui, para que se verifique o tipo objectivo do ilícito em apreciação, é necessário que a declaração, além de falsa, seja juridicamente relevante, ou seja, ter a virtualidade de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica[2].

Ora, reportando-nos ao nosso caso, temos uma declaração feita pelos sócios da "E…", aqui arguidos, declaração de inexistência de passivo daquela sociedade, quando na realidade, à data dessa declaração, deviam a D…, pelo menos, 3.500,00 €, correspondentes aos meses de renda em dívida de Maio a Setembro de 2011.

Trata-se deste modo, sem dúvida, de uma declaração inexacta mas caberá a mesma no crime de falsificação aqui em apreciação? Desde já se avança que a resposta é negativa.

A este respeito chamamos ainda à colação o artigo 1020º do Código Civil e os artigos 160º n.º 2, 162º, 163º e 164º do Código das Sociedades Comerciais.

O artigo 1020º do Código Civil dispõe que "encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação." Ou seja, precisamente para proteger terceiros, em particular os credores sociais, estipulou-se que a decisão de dissolução e de encerramento da sociedade não lhes pode ser aposta.

Isto significa que a declaração prestada pelos arguidos na deliberação de 19 de Junho de 2012, apesar de desconforme com a realidade no que toca à existência de passivo da sociedade, não é uma declaração juridicamente relevante pois não é pela mesma ter sido tomada que se possa contrariar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar. Aquela deliberação não constituiu um meio de prova passível de ser usado para afastar a existência de eventuais créditos.

Na verdade, nem a dissolução, nem a liquidação, nem até mesmo a partilha da sociedade podem impedir um credor de reclamar o seu crédito uma vez que os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento de débitos que não tenham sido liquidados.

Como tem sido firmado em vasta jurisprudência[3], "as declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar, são da mera responsabilidade daqueles... Trata-se de uma declaração rés inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais".

Assim, inexistindo uma declaração juridicamente relevante, no sentido de que os arguidos tenham agido intencionalmente com o propósito de causar prejuízo ao D… - ao declarar que a sociedade não tinha activo, nem passivo -, ou a outras pessoas, ou ao Estado, e ainda não se provando que os mesmos alcançaram para si ou para terceiro benefício ilegítimo, nem que actuaram com esse propósito, outra solução não resta do que arquivar os autos por não estarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo de crime.

Deste modo, determino o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277º n.º l do Código de Processo Penal.

(…)”.

2.

O queixoso D… requereu, então, a constituição como assistente e, concomitantemente, a abertura de instrução, visando a pronúncia dos arguidos B… e C… pela prática do aludido crime de falsificação, previsto e punível pelo art. 256º n.º 1 d), do Cód. Penal, imputando-lhes os seguintes factos: (transcrição) «67. Após o conhecimento da existência de um débito pela sociedade E…, L.da ao Assistente, os denunciados, agindo em comunhão de esforços, promoveram um plano destinado ao não cumprimento das obrigações e a causar prejuízo a esta; 68. Os denunciados deliberaram e aprovaram a dissolução da sociedade, afirmando que a mesma não dispunha de qualquer activo ou passivo, conforme balanço do dia 31.12.2011.

69. O que fizeram mediante uma "Deliberação Unânime por Escrito"; 70. Com base em tal documento os denunciados submeteram a registo a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade E…, L.da, a qual foi registada mediante a AP. ../……..; 71. O que determinou o cancelamento da matrícula da referida sociedade e a extinção da sua personalidade jurídica; 72. Os denunciados tinham plena consciência que faltaram à verdade quando afirmaram a inexistência de qualquer activo e/ou passivo na "Deliberação Unânime por Escrito" e, ao contrário do que fizeram apor no documento que elaboraram, bem sabia que a citada sociedade continuava a dever o montante referido no ponto 10), a que acresceriam juros de mora até ao efectivo e integral cumprimento; 73. Com esta conduta os denunciados prejudicaram a denunciante; 74. O objectivo dos denunciados foi o não cumprimento da obrigação a que a sociedade estava obrigada, impossibilitando o credor, ora Assistente, de ver ressarcido o seu crédito na sua totalidade; 75. Os denunciados, ao proferir as declarações que conduziram à dissolução da sociedade e à extinção da sua personalidade jurídica, agiram com o único intento de não cumprir com a sua obrigação e prejudicar a denunciante; 76. Ao terem praticado estes actos, os denunciados agiram de forma livre, voluntária e espontânea, tendo como única pretensão prejudicara denunciante, o que conseguiram, estando conscientes que estariam a agir contra a lei.».

3.

Admitido o requerimento e declarada aberta a instrução, foram realizadas as diligências tidas por necessárias e convenientes e, realizado o debate instrutório, foram os arguidos C… e B… pronunciados nos termos apontados pelo assistente.

4.

Inconformado com o decidido o arguido B… interpôs recurso finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição) “1. Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória proferida pelo 2° Juízo Criminal da Maia que após arquivamento proferido pelo Ministério Público, pronunciou o recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento p...

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