Acórdão nº 302768/11.0YIPRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 04 de Maio de 2015

Magistrado ResponsávelCARLOS QUERIDO
Data da Resolução04 de Maio de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 302768/11.0YPRT.P1 Sumário do acórdão: I. O conceito de “relação jurídica administrativa” a que se referem o n.º 3 do artigo 212.º da CRP e o artigo 1.º do ETAF, não se basta com o facto de a Administração ser um dos sujeitos, sendo necessário que o litígio em causa seja regulado por normas de direito administrativo.

  1. O contrato (de consumo) através do qual uma entidade (pública ou privada) se obriga perante um utente na prestação do serviço (público) de fornecimento de água, não integra o conceito de “relação jurídica administrativa”, regendo-se por normas substantivas de direito privado.

  2. Os tribunais judiciais são materialmente competentes para tramitar e julgar a acção na qual o prestador do serviço de fornecimento de água reclama do utente o pagamento da quantia relativa ao custo do que por este foi consumido.

    Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório B…, SA, sociedade fornecedora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, apresentou junto do Balcão Nacional de Injunções, em 19.11.2012, requerimento de injunção contra C…, Lda., com vista à cobrança da quantia de € 283,66, referentes a fornecimentos de água.

    Tendo-se revelado inviável a notificação do requerido, em 17.02.2012 foi a requerente notificada do envio do procedimento de injunção para a Secretaria dos Juízos de Estarreja – Comarca do Baixo Vouga -, para distribuição.

    Distribuídos os autos no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja, revelaram-se sucessivamente infrutíferas todas as tentativas de citação pessoal da requerida, tendo a requerente solicitado em 4.03.2014 a citação edital do legal representante da requerida.

    Em 6.03.2014 foi proferido o seguinte despacho: «Melhor analisados os autos e tendo em conta que está a ser reclamada a cobrança de “tarifas” pela prestação de serviços públicos essenciais de águas e saneamento a utilizadores finais, titulada por facturas, e considerando, ainda, que, recentemente, este Tribunal, em casos semelhantes ao que aqui está em apreciação, se julgou incompetente para apreciar as causas em razão da matéria, antes de mais, notifique a Autora para, ao abrigo do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, em 10 dias, querendo, se pronunciar quanto à verificação de uma eventual excepção dilatória de incompetência material deste Tribunal para julgar a presente acção.

    ».

    Em 21.03.2014, a requerente pronunciou-se, alegando em síntese: é uma sociedade comercial anónima de direito privado, que tem por objecto social exclusivo a exploração e a gestão dos serviços de águas relativos ao Sistema de Águas da Região de Aveiro; por Contrato de Parceria Pública celebrado em 29.07.2009, o Estado Português e conjunto dos Municípios de Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga, Vagos e, por Adenda ao referido Contrato, datada de 30.06.2010, também Ovar, os Municípios decidiram agregar os respectivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, num sistema territorialmente integrado denominado D…; para tanto, os Municípios, nos termos e para os efeitos do previsto no art. 2.º do DL n.º 90/2009, de 09.04, acordaram delegar no Estado, para exercício no quadro da Parceria, as respectivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais; pelo Contrato de Gestão celebrado em 23.09.2009, as referidas partes e a B…, S.A., doravante B…, atribuíram à E…, isto é, à B…, em regime de exclusivo, a exploração e gestão dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas, relativos ao Sistema; para efeitos da Parceria, os Municípios afectaram ao Contrato de Gestão as infra-estruturas, os equipamentos e os contratos indispensáveis à gestão do Sistema, operando a transmissão, a favor da B…, da sua posição, em todos os instrumentos contratuais outorgados indispensáveis a esta gestão e exploração do Sistema; a ré celebrou em 18.08.1995, com o Município de Estarreja, à data entidade gestora dos serviços de abastecimento de água para consumo público e recolha de águas residuais urbanas, o contrato de fornecimento; o art.º 64.º do Cód. de Processo Civil atribui competência aos tribunais judiciais para decidir as causas que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais. A competência da ordem jurisdicional comum é, assim, residual; há que averiguar se existe alguma disposição normativa que atribua competência à jurisdição administrativa para questões como a da presente acção; concretizando a norma constitucional do art.º 212.º, n.º 3, da Lei Fundamental, segundo a qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, estipula-se na lei ordinária, no art.º 1.º, n.º 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei 13/2002, de 19/02: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, sendo esta a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais; por seu turno o art.º 4.º, n.º 1, do ETAF estabelece as situações de competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal; para a definição da competência em razão da matéria há que considerar, portanto, qual a causa de pedir e o pedido apresentados pelo autor; o contrato “sub judice” não é um contrato de direito público e não está submetido a normas de direito público; a autora é uma sociedade comercial anónima de direito privado, não actua munida de poder soberano na sua relação com o consumidor, apresenta-se despida de qualquer jus imperii, numa posição de “igualdade de armas” para com a ré.

    Em 27.03.2014 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Em face do exposto, julga-se procedente a excepção dilatória da incompetência material destes Juízos de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja, da Comarca do Baixo Vouga e, em consequência, absolve-se a Ré C…, Lda. da instância.

    Custas a cargo da Autora (artigo 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil).».

    Não se conformou a autora e interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões: 1. Conforme resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o âmbito da jurisdição administrativa em matéria contratual não depende do carácter jurídico-administrativo do contrato; 2. Não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF, dado não estarmos perante a fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos; 3. A alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de (i) contratos de objeto passível de ato administrativo, (ii) de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou (iii) de contratos em que pelo menos uma das parte seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão, e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público; 4. Ora, a relação material em litígio é de natureza manifestamente privada, pois é pedido a condenação do cliente/consumidor final, aqui Recorrida, no pagamento de determinado montante referente aos serviços de fornecimento de água e saneamento, sendo a causa de pedir a violação da relação sinalagmática pelo não...

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